sábado, 10 de setembro de 2011

A Ara

Bem, pode-se dizer que o exagero da punição aplicada a Florence Yardley-Britcy faz parte da ordem natural das coisas. Ela tem origem eslava, mas lavou proveniências através do novo nome. Registado na sua Carta de Vida, pois claro. 
O que tem piada é que o aparente erro pretensioso de incluir na sua nova identidade um nome bem conhecido do Arquipélago acabou afinal por se mostrar bastante produtivo..., a sua graça assertiva conseguiu derreter com relativa eficácia alguns dos mais cromados corações da Administração, que lhe toleravam a snobeira. E veja bem isto: sem grandes custos pessoais  o que é obra, tendo em conta os tempos que correm e a vastidão e diversidade da oferta, como você aliás bem sabe... Como é que eu sei que sabe? Porque sei, ora essa! 
E isto também já sabe, mas é bom que nunca esqueça: a Empresa exige sempre um comportamento particularmente agressivo face a determinadas circunstâncias, as chamadas operações de alto risco. Aí não pode haver uma falha... 
Mas é óbvio que a Britchsky (era como eu a tratava em várias intimidades...), bem..., ela não estava preparada para tarefas verdadeiramente frias, é o que é. Tinha de desactivar uma cidade inteira, de deslocar 700 mil pessoas para que a Turmoil Risk ali montasse a sua própria pirâmide de engodos plutocratas. Está a ver a trama, provar à Ara a bondade legal daquela infâmia!...
Tudo isto a troco de subida de escalão num dos grupos da frente. 
Todos procuram garimpar um qualquer futuro melhor do que aquele a que a Administração da Empresa dá provimento. Todos nós sabemos disso muito bem, você incluído. Sim, apesar da idade já sabe... Mas deixe-me continuar, que ainda perco o fio à meada...
De facto a Britchsky cedeu a emoções desconhecidas. E a Ara atirou-a para o fim da tabela, a par duma quase simbólica multa à Turmoil por falsas declarações. Uma treta mascarada de justiça. 
Justiça! Isso é que era bom... Acho que já ninguém sabe o que isso quer dizer de facto.
Turmoil tem por hábito vencer, é uma privilegiada de Potere, com sede no Arquipélago, veja lá o sainete... Sim-sim, todos os accionistas vivem lá ou lá têm casa. E é uma autêntica ‘porta-global’, das que dividem o pouco do mundo conhecido que resta com umas quantas dúzias de comparsas. Sucessores, famílias, amigos, são eles os últimos representantes da velha democracia, essa oligarquia de comendas oxidadas sem qualquer outro interesse que não o de cada um, só ou em comandita. 
Odeio essa malta toda!...
Porque não tenho sorte nenhuma – não tenho conhecimentos no Arquipélago. E sim, mesmo assim estou a mentir, tem razão..., só que não é uma grande mentira. Em termos práticos, bem entendido.
(Mosaico Hundertwasser)
Mas voltemos à Britchsky, até porque neste instante, ao lado dela, sou aquilo a que se pode chamar um tipo cheio de sorte: subo e desço com uma regularidade insuspeita. 
A sua actividade conhecida iniciou-a como grumete num submarino gigante da classe UW-R (under world resort), passando depois a administrar uma verdadeira central de informações camuflada de promotora imobiliária para o Lado Escuro da Lua e Pólos de Marte – por sinal territórios sempre com excelente procura, o que prova bem o nível das suas máscaras. 
Acho hoje que era paga directamente por Potere para fazer não sei bem o quê. Pelo menos nunca me falou dos objectivos mais fundos das suas investigações. E foi por presumíveis bons serviços que um dia veio pela primeira vez à superfície, onde a reencontrei dotada já de grandes meios próprios e de um prestígio previamente anunciado e bem documentado, que era suposto comprovar no terreno.
Conheci Florence por mero acaso..., como quadro intermédio do Exército  também andei muito pelos UW-R. Sim, e à tona também, por vezes na incrível e desagradável condição de chasseur de restaurantes, no ‘Bismark Lounge’, por exemplo, e no ‘Lord Nelson Table’ – da Magelan Company... Pelo menos sempre tiveram o bom gosto de me pagar no dia previsto. 
Você gosta de ser chasseur?... Olhe que bom para si, que até gosta do que faz! É o que eu chamo um rapaz com sorte, sem dúvida!...
Bem..., a Florence era concretamente uma espia: tinha de saber quem estava onde, com quem e a fazer o quê, mesas e quartos tinham de ter o máximo de bugs. As pessoas envolvidas deveriam ser marcadas com um transmissor invasivo que você ainda não conhece: o líquido reflector GPMS (Global Position Mastering System). Aquilo depois de ingerido, com um whisky - ou até num cozinhado -, hospeda-se em qualquer organismo vivo e emite um sinal por tempo indeterminado, nunca menos de seis meses. 
É demoníaco! Têm de saber tudo, sempre, e pela certa!...
Não estou a exagerar nada, meu caro, o mundo é vulgar desde há muito. 
Mas ela também é muito interessante!..., vai ver quando a conhecer.
Fisicamente é uma girafa bonita, particularmente pelos olhos: com um metro e noventa e poucos, a oscilar entre a elegância formal e a agressividade necessária, consegue apesar disso encantar com uma franqueza que não é falsa mas que, ao mesmo tempo, esconde muito. E não é a allumeuse que se diz ser, sempre se apaixonou sem reservas... Cheia de fraquezas fáceis – afinal uma característica rara em alguém supostamente tão forte como ela afinal pretendia parecer, e até já demonstrara.
Enfim, foi por causa de uma dessas fraquezas que não conseguiu montar convenientemente toda a necessária teia de informações falsas – todas bem entretecidas em fios de verdades científicas, está a ver a coisa... E assim permitiu que a velha cidade-estado de Zakopane - o Farol do Báltico, como ficou conhecida depois da última grande subida geral das marés de há meio século - vencesse por quatro votos o exército de advogados da Turmoil. Dois deles, suponho que os chefes, suicidaram-se em plena audiência, em frente de toda a gente! 
Imagina-se vagamente o que não estaria em jogo, não é verdade?...
Porquê? Porque a Britchsky se apaixonou irremediavelmente, desta vez não por um homem mas por uma cidade inteira! Dizia que nunca vira nada tão antigo, tão cheio de carácter e humanidade, tão sólido, e ainda por cima com árvores... Contou-me tudo isto antes de se ir embora de vez para ocupar um cargo de croupier no caquético 'Las Vegas Deep'. A inesperada paixão por algo que desconhecia em absoluto afastou-a da necessária firmeza para sustentar a  operação da Turmoil sem erros.
Então as árvores!... Foram as árvores que lhe deram a volta de vez, dizia-me que elas tinham algo de divino, nunca percebi bem o quê, mas está bem.
E lá voltou ela outra vez para os UW-R, só que agora é para sempre. Bem, nunca se sabe, claro...
A Ara julga, e Potere nunca perdoa a quem falha.


É a vida... 
A nossa, claro, porque depois há a dos outros, e esse é que é o grande problema.
Porquê?!... Ora bolas, rapaz, você não quer o que não tem?
Deixe-se de tretas, é claro que quer!...


4 comentários:

  1. Eu? Eu queria viver de fazer mosaicos...adorei, Benedito, a música inclusive!!!

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  2. Minas Novas, a minha primeira comentarista!
    Ainda bem que gostou - mas isto ainda não está completamente afinado

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  3. Chegando por aqui, ainda sem saber ao certo o quê nem como dizer, mas querendo deixar registrada a alegria de encontrá-lo em letras, novamente..e haver novo espaço para as boas prosas.

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  4. Querida Luciana, disse tudo.
    Obrigado pela visita!

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