sábado, 24 de setembro de 2011

A estátua*

Nas memórias intrepanáveis o Sonho representa um caminho que parece acabar num enigma. Embora para mim, na verdade, não passe de um beco com o Universo ao fundo.
Eis o que sobra dele.

Encontro-me numa fila de desconhecidos que confina numa secretária. 
Sentado atrás dela, um gorducho enfarpelado numa justa fatiota de cetim castanho analisava e decidia. Usava também um gorro negro de tecido brilhante, com um pássaro em voo bordado a dourado.
O exótico personagem ia folheando documentos com determinada condescendência crítica. Via-se isso nos gestos: havia breves e pensativas pausas, punha um papel de lado – e, não sem antes coçar a testa com um indicador animado pela rotina, dava instruções ao respectivo proprietário, recomendando-o a destino desconhecido para todos nós, seus companheiros de triagem. Um bacoco ia para ali, outro para acolá,  todos desapareciam sem deixar rasto no chão ou lamuria no ar.
Como seria de prever, chegou a minha vez.
Mostrei parcos haveres: uma pasta envelhecida pelo uso de várias mãos, não muito preenchida de artigos. Lá dentro havia uma dúzia de desenhos de várias substâncias e conceitos estéticos – coisas que lembro sentir alguma renitência em mostrar.  
O meu receio revelou-se escusado: o burocrata dos sonhos folheou a pasta sem se interessar por nada em especial, para de seguida me apontar perspectivas e trajectórias.  
Havia um corredor não muito comprido que terminava numa parede. À direita abria-se uma arcada bem larga. À esquerda, encerrava a percepção uma porta de madeira devidamente fechada por um grande ferrolho com batente.  
Para lá da arcada um espectáculo tão feérico quanto esquisito apresentou-se-me à curiosidade. E a curiosidade em sonhos (para quem não sabe ou não se consegue lembrar) é sempre muito mórbida, muito pouco contida. Mesmo se um medo qualquer ou uma intimidade obscura aconselham prudência.  
Porque o sonho vive por si, como toda a gente sabe – e je m’appelle Erik Satie, comme tout le monde...
Entrei numa enorme câmara que apresentava um tecto globular composto de meias esferas côncavas. O espaço, até onde se podia vislumbrar, estava repleto de camas. Havia-as de todos os tipos, para todos os tipos, ricos, pobres, grandes, gordos, pequenos e magros. A única certeza era a de que uma delas me pertencia por direito – ou, quem sabe, por pena.  
De facto, no centro da vasta câmara, iluminado a espaços por uma luz forte vermelho ferrugem que parecia vir do seu interior, coberto com damascos e grandes almofadas de veludo, encontrei um enorme e sumptuoso leito com dossel. Descaradamente mefistofélico, diga-se em abono da verdade.
Não me interessou, passe o facto de me pavonear por vezes (e consciente da vaidade) com desmaterializados pactos míticos, tendo Deus e o Diabo por sócios.
No passo seguinte encontrava-me já na frente da grossa porta de madeira, que representava a segunda saída do corredor indicado pelo tipo do chapéu com pássaro.
É claro que entrei, que mais poderia fazer?
Lá dentro esperava-me um ambiente calmo, quase soturno.
Era uma espécie de nave de igreja, imensa, notoriamente antiga, com vitrais ao fundo a coar uma luz indefinida onde prevalecia um amarelo pálido enfeudado em finas e também ténues faixas azuis. Uma diagonal mágica de luz e côr que cumpria mais de vinte metros de pé direito, e que exibia a espaços a dança contínua e inefável da poeira.  
Tudo ali era grande e minúsculo.
Havia bancos corridos de madeira escura, muitos – mas poucos utentes. E esses de cabeça baixa, em ar de prece ou vigília. Ou no mais puro adormecimento.
Ausência absoluta de som.
Dei comigo ajoelhado no chão, um chão incerto de pedras ali colocadas há muito pela arquitectura românica. Desenhava nessa tela improvisada, com paus de giz colorido, uma bem completa galáxia (vá-se lá saber porquê). Era pouco mais que um fedelho, convencido da minha enorme convicção: desenhava estrelas, nuvens cósmicas vizinhas do início do Mundo, pulsares, estrelas binárias, anãs vermelhas, buracos negros, poeira estelar, cometas, supernovas – e mesmo um ou outro planeta com hipóteses.
Subitamente senti uma presença estranha, que na verdade não o era. Ao meu lado, alguém (uma pessoa que na realidade muito prezo) observava os meus esforços com o empenho único da amizade desinteressada. Esse alguém – uma mulher muito alta e bem mais velha do que eu – perguntou a dada altura na sua voz forte e um pouco arrastada: 
– Mas se queres voar para que raio estás tu a fazer uma estátua?...
O sonho acabou ali e ainda hoje não tenho uma boa resposta para tal pergunta.
O meu irmão, que é analista de sistemas e psiquiatra amador, resolveu de forma simplista a parcela mecânica do enigma:  
– Há um claro silogismo implícito! Pela força da gravidade uma estátua é artefacto totalmente incapaz de deixar o chão pelos seus próprios meios...
Não resolve nada, mas não deixa de ser uma pequena verdade.
A outra pequena conclusão é minha em exclusivo, e também não resolve nada. Remete-se a um falso silogismo para assim adquirir certa substância contraditória: 
É certo que o homem fica sempre preso às suas obras, mas Blériot conseguiu voar no seu canard monoplane...


* (Adaptado às circunstâncias e com algumas alterações de forma e conteúdo, este título faz parte do volume ‘Contos Acrónicos’, editado em 2003)




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