domingo, 27 de novembro de 2011

JOGOS NA TV*


* (texto escrito em 2000 e publicado em Contos Acrónicos)


Há dias revi-me num velho ambiente que a TV mostrava como se houvesse ali grande novidade. Repetia-se, por via da fatalidade impiedosa de assegurar share noticioso, arrancando vagos e impotentes encolheres de ombros ao pedacinho de mercado verdadeiramente interessado no assunto em causa.
Tratava-se da crónica guerra civil angolana.
Da sua crónica.
Redundava em tempo e substância. Só não distinguia os motivos. E, das duas uma: ou sabia e não os queria mostrar, ou não sabia e é tudo! Ou nada.
Coloquei no leitor de cd’s um dos temas de The Dark Side of the Moon, dos Pink Floyd, e baixei o som da televisão.

Em 1974 esta música estava integrada em muitos de nós, milicianos do previsível fim de uma guerra. E nós estávamos nela – na música -, por questões de génese cultural ou de pura sobrevivência estética e filosófica. Em havendo tais preocupações, a guerra tem pouco espaço de manobra.
Era o que então pensávamos.
Com aquele som, a imagem voltava ao seu tempo.
Time fez-me reencontrar a intimidade que existia no aquartelamento, nos mamoeiros espetados para o ar com a sua copa de folhas no topo do tronco e frutos testiculares, no pó do ar com os seus torvelinhos na pista de macadame, nas avionetas do correio e nos felizardos que nelas iam e vinham de Luanda.
E a missão por perceber, a diversão instalada dentro da probabilidade incerta dos jogos de sorte e de azar, como qualquer sistema binário que se preze.
E, acima de tudo, o  monstruoso e maravilhosamente irresponsável amanhã que se lixe.
A contradição era visível, mas nós ainda só éramos cegos que nem toupeiras. A missão desaparecera com os últimos mortos em combate. Achávamos – o comando promovia a ideia – que ajudar os da terra era a alternativa óptima a uma guerra imbecil que só poderia ser compreendida, e como tal vencida, num dia-a-dia muito espalhado num tempo qualquer que entretanto já não era o nosso.
Mas o tempo correria, e toda essa espécie de bom senso foi abandonado pelas superiores estratégias nacionais, preocupadas apenas com o pendor das geopolíticas dominantes que deveriam vencer e comer o pedaço.
Era, diziam as estratégias, a opção correcta, a atitude aconselhável, o rumo a seguir!
O limbo só nos mostrava o desconhecido.
Restava ouvir com atenção displicente algumas «fórmulas mágicas suavemente sussurradas» - se é que ainda sei traduzir alguma coisa.
Éramos locatários do exército, mineiros de um futuro tacteante, à carga do Estado e pagos para fazer não se sabia bem ao certo o quê.
Compreendíamos que a nossa guerra acabara – apenas isso. E sobrevivíamos, até ver, no mais encantador dos oblívios técnicos: ninguém nos ligava peva, soldados dessa história instantânea.
Há muito que nos despedíramos do demorado e incompreensível esquema que nos convidara, a todos e em tempos, a uma observação próxima e criteriosa da guerra que até então se fazia. Mas já não íamos para levar ou dar, como supõe o certeiro provérbio.
Íamos simplesmente para ver o monstro de perto.
E vimo-lo.
Eu, apenas por mim, possa jurar que fui tentar ver como acabava uma guerra. Objectivo, diga-se de passagem, que não consegui atingir. As NEP’s (Normas de Execução Permanente) não falam do assunto, logo, o fim da guerra, não estando previsto, não existe. E assim as NEP’s são proféticas e de certa forma exactas na sua premonição.
O que é agradável de saber... Enfim, há certezas!
A emergente falta de actividade castrense atirara-nos para um langor fácil. Fogo só em porcos bravos, numas jibóias lentas e na carreira de tiro – por vezes improvisada em campo de futebol ou de vólei. Para espantar o tédio. E acontecia isto num sítio que eu encarara, no primeiro dia, como um tremendo «buraco», explicado à maçaricada num grande painel pintado nas cores vivas da tinta plástica, que anunciava ao ‘transeunte’ a chegada à «Estância de Férias do Zala».
O painel era sucinto mas provou-se depois que já fora ultrapassado pelo tempo. Anunciava piscina, o golfe, ténis e um tal «‘stand’ de tiro ao preto». Estes temas nunca foram comprovados na minha vigência. A piscina existia, mas estava vazia e abandonada desde há muito.
Morrera gente por ali, dizia-se.
Havia coisas bem mais interessantes para fazer.
Passeios inconscientes pelo mato fora, banhos nas pequenas cascatas do Lué-Lué, o “boi-cola” em quantidades apocalípticas, e uma quase total ignorância do comando. Naquela ilha doida do meio do mato. E passear a três com dois cães e uma faca era um desporto que se tornou no melhor da festa.
Só para alguns, convenhamos.
Os que o faziam desconfiavam que não corriam qualquer perigo efectivo, e havia sempre uma grande tendência para que os mesmos se apresentassem como voluntários no corpo de protecção pontual aos MVL, que iam e vinham da ‘Lua’. Via inevitável, o Nambu, que permitia compras de vária ordem: erva bruxa, sapatilhas, t-shirts brancas, toalhas, vinho de palma. E uma queca mais escondida...
Eu, João Mário, Zé Vicente (e os cães!)
Em meados de 74 havia uma paz simpática. Zala era um paraíso cafrializado em tainas, cinema velho e passeatas mascaradas de missões. Havia uma colina a oeste – o morro da UPA, para onde estava virado o Pelotão de Morteiros -, mirada com respeito por via de histórias contadas e aumentadas.
Mitos razoáveis do mister da guerra, com muita fantasia e realidade, numa mistura equilibrada, aceitável para os neófitos.
Um puto preto, que os soldados mimavam e cuidavam como a um filho, vestia um pequeno camuflado onde por vezes lhe colocavam umas divisas de capitão.
Era o ‘Bambino’!...
Dizia-se que a pequena cicatriz que apresentava no queixo fora feita de raspão pela bala que lhe matara a mãe – no meio de uma fuga madrugadora, com o miúdo às costas, à frente de uma operação de Comandos.
Havia também um pisteiro sem o braço esquerdo, com fama de perigoso épico, que deambulava altivo por ali sob o nome bíblico de Zacarias. Dizem-me que foi ele que elaborou a operação em que ‘Bambino’ é retirado à sua existência anterior. E mais umas centenas de negros e negras agremiados à volta de um não menos bíblico Jonas. E um sem número de actividades heteróclitas a que um soldado, fora da guerra consigo e com o resto do mundo, se podia dedicar sem medo de represálias ou de outros desastres periféricos.
A perfeição absoluta, dentro da maior imperfeição genérica.
Era como um sonho permanente, improvável, cheiroso de terra, luminoso, com as nuvens a pousar numa parte específica do céu, como se ali houvesse um enorme separador invisível. Um céu primevo, raramente alterado por feridas no jet stream, que mesmo sendo poucas desapareciam num ápice. No ar, só quase havia pássaros e borboletas, e uma desportiva DO-27 ou um esporádico e não menos desportivo Alouette. Por duas vezes vi uns Pumas a levar Comandos.
E, diariamente, os correios da Satal e da CTA, que aterravam no meio de grande euforia a branco-e-preto – ou a preto-e-branco, como se queira.
Mas havia euforia.
Os tempos destoavam da metáfora superficial que justifica o inadmissível crime que a guerra será sempre para os inocentes nesse negócio. Mesmo quando se lhes apresentam razões que sobram, explicadas pela história que devem ouvir - por favor, com desprezo ou muita atenção. A compreensão não é para aqui chamada. Todas as guerras provam isso. Especialmente as modernas, porque das antigas já pouco se sabe.
O certo é que o povo, seja ele qual for, não ganha.
E isso é absoluto.
Ainda assim havia a necessidade marginal de resistir erecto e vagamente operacional perante o comando. Uma atitude grata nestes meios fechados, e, à época, especialmente apreciada. Quando surgia.
Um soldado será sempre um soldado, mesmo quando não tem o menor jeito para isso. Mesmo quando não vale nada como soldado – em absoluto o meu caso. Mesmo quando não percebe as razões da guerra, ou simplesmente as entende como matéria espúria ou decadente.
O que continuava a ser o caso.
Foi nesses primeiros dias de África que conheci o Hermínio. Tanto quanto sei, é hoje um respeitado operador de transportes internacionais (camionista TIR).
Conheci, a caminho do Zala, aquele que viria a ser o meu maior amigo, conselheiro e aconselhado – condições ‘sine qua non’ da amizade profunda e confiante (prima co-irmã do amor). E conheci também o esplendor magnífico da sua desgraça anterior.
Aos 18 anos e sem formação específica ia dar em «caçador especial» - talvez na Guiné, que era o mais temido dos destinos ultramarinos. Chicha para canhão, com treino específico na guerra ao vivo.
Vai daí resolveu fugir à tropa. Ele e o futuro cunhado. Para Espanha – que ao tempo era quase outro continente. Tinham dinheiro para uma semana e comida para dois dias.
Duarte e Hermínio na mãe-de-água
Pouco tempo para ainda menos meios.
A fome apresentou-se-lhes como um semáforo. E, como um bilhete de visita, chegou também um chasseur da Legião Estrangeira Espanhola que lhes pagou uma bela refeição (a primeira em dois dias de côdeas). E lhes garantiu, sob juramento, sucesso em todo os aspectos no Sahara Ocidental, ocupado pela Espanha de conluio com um Marrocos deitado no divan, que negociava langoroso junto ao narguilé, ao chá de menta e às massagens de função duvidosa.
Hermínio e o futuro parente aceitaram o desafio. «Sempre parecia melhor do que morrer na Guiné ou em Moêda!», explicou-me. E, durante ano e meio, os dois amigos pagaram caro a escolha.
No meio da puta-que-os-pariu – que afinal é a nossa querida Terra -, controlados por uns tarados do poder e a olhar para as dunas que mudavam subtilmente como a mais suave curva da mais volúvel das mulheres (e não me venham com a acusação de machista porque o deserto é feminil! perigoso e feminil, o que está correcto!), Hermínio e futuro cunhado desesperavam.
Mulheres de areia e homens cabrões!? Aquilo era tão bom que os dois amigos fugiram através do deserto para junto do mar.
Aí conseguiram transporte para Tenerife, onde se apresentaram ao consulado português. Em três dias estavam de volta à Pátria amada e duas semanas depois em Angola, como recrutas de uma qualquer companhia de Comandos em formação. Como voluntários! Já tinham dois anos de tropa macaca. Mas iam fazer muitos mais.
Hermínio recusou efectuar a última prova do seu curso ‘Comando’: uma acção de combate real. Tornara-se por isso num ‘Comando falhado’ – uma denominação cheia de objectividade redutora. Acabou por fazer sete anos de tropa e foi sempre um grande amigo.
Mas a explicação para que um esquisso de soldado apesar de tudo se mantenha erecto e operacional resulta do facto de, no perigo, tanto o alegado cobarde como o virtual herói serem obrigados a ter sempre como referência o reduto primordial: a casa onde estão os amigos do momento, que os defenderão com as suas armas.
O que também só é bom quando o inimigo não é o próprio, transmutado por alquimias desconhecidas de uns, conhecidas por outros... Aí, só Deus poderá valer, mesmo quando entendemos não fazer parte do incomensurável e divinal rebanho. Porque:

«If the band starts playing in different tunes
I’l see you on the dark side of the Moon»...              

Muito depois do jantar, muito depois do xadrez, da erva bruxa e de um Vivaldi que ajudava a adormecer, desata um tiroteio. Um sargento-ajudante, boçal em estilo e maneiras, borrado de medo na sua primeira experiência no mato, à espera de chegar à Metrópole como alferes da Guarda Fiscal – que a última comissão de serviço no Ultramar em zona operacional lhe garantiria -, dispara o carregador inteiro da sua G-3 no telhado de zinco ondulado, às quatro da manhã, a partir do interior do seu quarto. Porque um pangolim se assemelhou por momentos àquilo que o ajudante pensou poder ser o inimigo. O raspar das escamas grossas do bicho nas chapas do telhado tornara-se suspeito à luminária.
Quase toda a gente entrou em estado de choque. Um telhado varado, um ajudante a fazer figura de parvo, um batalhão inteiro em alvoroço, e o cadáver quase intacto de um mestre comedor de formigas encerrado nas suas placas ósseas – que tanto quanto percebi não morreu dos tiros mas sim à paulada. Era tudo.
Foi uma das nossas poucas vítimas, ao lado de umas quantas cabras do mato, pacaças e porcos bravos. As cercanias minadas ajudavam ao “menu” do batalhão e a verdadeiras infelicidades - só imprevisíveis para quem não conhecia o mapa de defesa de Zala ou o pretendia furar à força.
Tínhamos umas poucas semanas de mato: éramos ‘maçaricos’ em qualquer guerra – passada, presente ou futura. O mundo circundante, tal como era conhecido até ao momento, não passava de uma vaga ameaça escondida algures, desprezada pelos mais afoitos. Os jogos, o circulozinho de fogo com algodão e álcool usado no espectáculo único do suicídio do escorpião..., a missa - que alguns assistiam simplesmente para agradar ao padre, que até era um gajo porreiro -, tudo isso era já uma farsa gasta.
Era o descambar das burocracias militares, visível para os milicianos, que diplomaticamente condescendiam enquanto tentavam arranjar ocupação. Àquela hora já muito poucos pensavam em fugir – fosse o que fosse que acontecesse. A revolução prosseguia, e assim teria de ser. E ninguém fugiu, apesar das facilidades políticas.
Uns quantos perderam a paciência – o que também se compreende.
Desconfianças mútuas nas chefias, julgamentos virtuais intermédios - e por média inconsequentes -, acasalamentos intelectuais de circunstância – ou não. Sinais vários que mostravam uma Angola em instantâneo, que naquele momento corria em câmara rápida. Um tempo congelado mas pouco durável, e muito menos para nós – como depois se viu.
Assim chegou a outra guerra.
A outra!, e nós ainda não conhecêramos nenhuma.
Éramos simples espectadores do fenómeno que rastejava na sua evolução, camuflado nas raças e nas etnias, no barro da terra e no verde impenetrável da mata. Cores que servem de fundo a uma luxúria que esconde venenos e panaceias com códigos tão antigos e imbricados que os sentidos considerados normais não detectam.
Pequenos abusos e picardias irrisórias anunciavam o fim do respeito pela normalidade até então tida por histórica. A urbanidade terminara de vez e mostrava porque nunca tivera solidez evidente naquelas coordenadas.
O colono tinha de ir embora! Angola era dos angolanos e «A vitória é certa!».
Um dia, já em Malange, verificámos no mapa da sala de comando o avançar inexorável das tropas da FNLA e do MPLA – que afunilavam os seus movimentos na nossa direcção. Era uma das últimas batalhas de cidade do pós-25 de Abril – uma das que acabariam por dar o domínio político e militar definitivo ao país prematuro dos fiéis a Agostinho Neto.
N’Dalatando tinha caído às mãos do MPLA uns dias antes. O comandante local do destacamento português – o capitão miliciano Afonso Pereira –, numa mensagem cripto enviada à chefia militar de Malange, dissertava já só em linguagem tristemente poética sobre a «paisagem lunar» que o breve conflito lhe deixara nas ruas do centro urbano e arredores da sua ex-Vila Salazar.
Aguardávamos, apodrecidos de incapacidade, que a gadanha de Marte se aproximasse e mostrasse os seus portentos.
Ao fim desse dia, eu, Manuel Lamas – manual deste lamaçal e futuro bibliotecário de horizontes mitigados -, comandava uma patrulha que devia fiscalizar o recolher obrigatório a partir da meia-noite. Putas e artistas incluídos.
Demos boleia a um radialista local, que naturalmente pretendia chegar a casa sem problemas. Como o Exército Português já não representava o inimigo, estar com ele garantia um guarda-chuva de impermeabilidade razoável. No dia anterior eu emprestara-lhe uma cassete que a minha namorada de então me enviara de Portugal. Era uma peça estranha, de um grupo dinamarquês - os Savage Rose. Tinha sido escrita para acompanhar o voo naturalmente paradoxal de um bailado projectado por Ionesco chamado ‘Jeu de Massacre’. O ‘Triunfo da Morte’ vivia de um leitmotiv obsessivo, permanentemente visitado através de máscaras melódicas com cambiantes curtos mas precisos. Uma destas passagens podia perfeitamente ilustrar sonoramente o ‘Grito’ de Munch. Para todos os efeitos era um som muito interessante. Acho, cada vez mais, que assim permanece.
O meu amigo radialista decidira passar a cassete no seu éter alugado, na sessão dessa noite, no meio de África, para alguns ouvintes, sem qualquer outro objectivo que não o de proporcionar algo de verdadeiramente novo aos seus cúmplices de tímpano.
Anisette fecha o texto da minha cassete com uma estrofe impiedosa:

Dear Mr. Harvester
What’s in your bag?
Solitude and death...

Parecia o destino a trabalhar.
No dia seguinte a guerra instalou-se em Malange.
Uma metralhadora pesada da FNLA foi montada no topo do hotel Diamante, massacrando o dia com o estrondo hiper-tenso dos seus vinte milímetros de calibre. A noite vislumbrava-se num zimbório de balas tracejantes. RPG’s e morteiros variados mostravam o injusto e eficaz artifício do seu poder.
A mim mandaram-me montar segurança aos paióis do quartel!, como se isso fosse aceitável, debaixo de bombardeamentos contínuos e a par de uma total inexperiência pessoal.
Era o que havia.
Cheio de um grande medo, tentei que os outros não fossem tomados por ele – porque isso não dava jeito nenhum!
De manhã, já eu dormia, e o quartel encheu-se de refugiados civis. Famílias inteiras, carros, haveres dispersos, tudo se amontoou como tralha num espaço em que a capacidade logística se dividiu por vinte, em três dias.
A simples sobrevivência tem aspectos didácticos ao nível do espírito de grupo. Mesmo quando o tal grupo não passa de um amontoado de pessoas assustadas, que à vista de uma suposta protecção imediata procura logo o máximo de comodidade disponível. Sem vislumbrar que pode estar a incomodar terceiros, e que esses terceiros não passam de seres humanos falíveis e tão desprovidos de meios como elas próprias.
E tudo isto é muito natural porque a multidão é naturalmente cruel. E surda, e cega, quando não consegue ser ainda pior.
Ou o contrário. O que também acontece.
Mas os políticos é que sabem tudo sobre este negócio. Ou nada – o que ainda é mais comovente.
O assédio chegou para durar e Malange caiu indefesa.
Há um herói verdadeiro nesta história. Anónimo. Era um oficial do Quadro Permanente. Tentou várias vezes encontrar o possível dentro do impossível. Corria a noite atroada de fogo no seu ‘jeep’, sozinho, tentando juntar vontades e consensos. Recusou por vezes condutor ou escolta. Não conseguiu consensos e menos ainda vontades a seu favor. Evitou alguns desastres maiores.
O que não é mau para um homem só.
Uns dias depois encontrei uma mulher em pleno trabalho de parto debaixo de um dos grandes eucaliptos do aquartelamento. Levei-a para a minha cama, não havia outra. Depois, levei-lhe uma laranja para o amanhecer do filho e bebi o resto do dia a minha ração de vodka sem laranja. Por um momento, muito curto, senti-me, também eu, um pequeno herói. Ainda me lembro do gesto com um prazer inexplicável. Orgulho-me desse resquício de grandeza. Tenho filhos.
Um mês depois, o pouco que ainda restava da população civil de Malange – o pouco que ainda não fugira ou morrera – abandonou a cidade com o Exército Português, com o fim da sua presença. 
Chorava calada os seus mortos recentes e a sua vida reencontrada numa desgraça que compreendia muito mal. E numa saudade que já não podia sarar de modo algum.
Soldados de ocasião e sem missão real – como nós, os milicianos, mas também só nesse aspecto -, alguns poderosos deste e doutros momentos têm por desporto favorito uma irresponsabilidade partilhada em circuito fechado: quando não sabem mais o que fazer praticam um tipo de poker onde ganha mais aquele que maior número de sonhos consegue destruir e transformar em pesadelos.
Em ganhando, tudo se justifica.
Há vinte e cinco anos foi assim em Malange.

Nada mudou. 
O massacre absurdo prevalece na TV tautológica. 
Aqui e ali, regional e generalizado. 
Redundante e por toda a parte.

domingo, 20 de novembro de 2011

EÇA DE QUEIROZ E OS SEUS CLONES – EPÍLOGO



Estranhamente – ou talvez não –, o volume que eu imaginava como provável para conter resumidamente o que conseguiria obter espiolhando a vida do escritor, relendo as suas obras e lendo mesmo pela primeira vez algumas que não conhecia de todo, viu rapidamente a sua dimensão ser substancialmente aumentada e a sequência reordenada.
À semelhança do que acontece com a sua obra, que teve o dom de aumentar de interesse à medida que eu próprio ia crescendo (sei-o hoje como nunca), Eça foi crescendo também como objecto da minha observação. 
Os seus escritos de imprensa, as suas cartas, os seus contos – muito do chamado ‘último Eça’ –, serviram não só a minha delícia e surpresa, mas ainda mais o meu espanto face à multiplicidade e vastidão do seu conhecimento sobre a Natureza Humana. 
Ele prevê e explica a I Grande Guerra ao primeiro sinal do imperador Guilherme de Hohenzollern. Sinal este que será efectivamente dado pelo Kaiser cerca de 20 anos depois de tal previsão, e com a presença de vários dos protagonistas antes elencados pelo escritor.
Bismarck é apenas um deles. 
A vivissecção da França pretensiosa e da sua república jacobina, moralista e prepotente, os formalismos doentios da sua mesquinha administração e a própria sociedade francesa – tudo é esmiuçado ao pormenor em textos especialmente arrasadores.
A Inglaterra ironicamente sarcástica, polida e elegante, a imprensa medíocre, os bombistas anarquistas (o socialismo mórbido, como os classifica Eça), a sanguínea e única Espanha (a morte de Canovas), a bem-mandada Alemanha e o dramático sonho brasileiro, o emplumado czar de todas as Rússias e a verborreia meridional de Humberto de Sabóia – tudo serve para que o escritor construa um mapa político-social bem vivo da época, difícil de igualar por qualquer historiador dedicado. 
Eça vê por dentro.
Lê tudo, conhece de perto muita informação classificada – aquela que a sua profissão lhe faculta em permanência. Daí ser possível ler hoje um texto dele sobre o Afeganistão e espantarmo-nos com as suas observações, em tudo semelhantes às do melhor jornalismo actual (ou até mais acutilantes) que, ao contrário de Eça, vai lá para ver e por ali permanece a espaços ou em contínuo.
Finalmente, o escritor já só refere a política como um mero negócio de poder, seja ele representado numa qualquer democracia parlamentar (republicana ou monárquica), seja no mais primitivo dos estágios sociopolíticos então vigentes. 
De Portugal já só quase fala com profunda ternura e visível saudade. 
A espiritualidade que agora demonstra nos seus escritos – que lhe valerão zurzidelas de muito republicano laico no activo e até de antigos companheiros – sobressai nas suas Lendas de Santos, sem ensombrar as autênticas anatomias do comportamento em que se mimetiza.
Finalmente, a correspondência familiar dá-nos a imagem de um homem dos seus, que serão sempre a família – especialmente venerada dado ser algo que nunca tivera de forma completa até então – e os muitos amigos que chegam sempre, de várias paragens. 
A sua morte prematura contribuiu em grande parte para o aparente mistério que envolve alguns momentos da sua existência: que Eça não gostava de falar da sua ascendência toda a gente o sabe – e facilmente se percebe porquê. 
Mas tal não significa que não falasse de todo. 
E se a sua filha Maria tivesse mais do que 14 anos quando o pai morreu, talvez o livro Eça de Queiroz Entre os Seus não tivesse sido considerado à época apenas uma réplica de desagravo com origem em duas pessoas que só se lembravam do escritor enquanto crianças – e, como tal, pouco dignas de crédito porque apenas transmissoras duma ‘versão oficial’ demasiado carregada de sentimentalismo amoroso. 
«A nudez crua da Verdade...»
O que é um erro abissal e a fórmula simplista muitas vezes usada por académicos e outros teóricos para transformar um verdadeiro testemunho familiar – necessário a qualquer biografia – num documento tecnicamente imprestável. Neste registo Gaspar Simões é apenas o representante máximo de um vasto leque onde se juntam galhardamente pessoas de real valor, meros curiosos, pedantes e idiotas profundos. 
Um outro facto que resultou da inesperada morte de Eça foi o desaparecimento de muito do seu espólio pessoal, pois o navio que o carregava a partir do Havre, após o seu enterro provisório em Paris, foi a pique à vista do porto de Lisboa. Nem tampouco se sabe ao certo o que lá haveria e então desapareceu. Grande parte da sua biblioteca pessoal seria, por si só, uma perda irreparável. Mas muito outro material informativo existiria certamente – e aí sim, o acidente adquire foros de grande desastre cultural. 
Tal como eu, muitos serão os leitores de Eça de Queiroz que pensarão por vezes no que teria acontecido se ele não tivesse morrido numa altura em que – desprendido de qualquer vulgaridade ou interesse localizado que não o trabalho e a família – escrevia algumas das suas melhores páginas, onde A Cidade e as Serras representam um exemplo maior. 
A decrepitude, que alguns já terão presumido face a tão académica hipótese, não seria certamente o caso. 
Eu coloco a dignidade humana como o objectivo que certamente continuaria a querer impulsionar e a defender com todas as suas forças e sabedoria. 

António Eça de Queiroz

sábado, 19 de novembro de 2011

CAPÍTULO XII – Abençoada ignorância!...



Já perto do final da jornada, fui outra vez surpreendido por uma conjugação de acontecimentos que acabaria por inscrever mais um pouco de magia na viagem espácio-temporal que efectuei pela galáxia Eça de Queiroz
O primeiro elemento é uma data: o dia do Pai – o dia em que os católicos honram S. José. Nesse dia recebi da minha filha uma prenda de intenção óbvia: era O Segredo de Eça – Ideologia e Ambiguidade em A Cidade e as Serras, do luso-americano Frank F. Sousa, prefaciado pelo professor catedrático e grande queirosiano Carlos Reis
Curiosamente, é neste prefácio absolutamente insuspeito que encontro o ‘tapete mágico’ que me levaria ao último troço desta minha muito excitante e enriquecedora aventura de mais de dois anos. 
Carlos Reis escreve sobre algo que provou a minha ainda grande ignorância no que respeita à obra do meu extraordinário bisavô. Hoje considero tal ignorância próxima do intolerável, ainda que tenha de aceitar que tal facto muito contribuiu então para a minha felicidade. 
Diz o conhecido académico a dado passo do seu prefácio: 
«(...) para já não falar em diversos contos (como o notável José Matias) e em não poucos textos doutrinários (...)». 
José Matias?, notável?!... Mas eu nunca lera aquilo! Escapou-me, escondeu-se-me – que diabo!, como foi isso possível?... 
Mas foi e não há nada a fazer. 
Para cúmulo, quando o procurei no meu ajuntamento de livros, tinha-o não só em três edições diferentes dos Contos, mas também em separata – editado a par do primeiro esboço de A Cidade e as Serras, um texto titulado de Civilização
Rapidamente supri a minha falta e, nessa mesma noite, li de enfiada (o que não é difícil) o até então totalmente ignorado José Matias
Fiquei siderado! Três personagens, sendo que uma não fala (o ouvinte/leitor), outra é o narrador, e a terceira (a principal) vai a enterrar? 
O narrador surge-me como um fala-barato (fala caro e muito), que, com sarcasmo algo velado, se distancia de forma quase asséptica do objecto da narrativa – o recém-finado José Matias de Albuquerque e os seus amores e desamores. Há neste narrador uma pompa arrogante que oscila entre o proto-hedonismo elitista de homem de muitas letras e teses e o toque de uma compaixão que roça o desprezo. 
O final é idêntico ao d’Os Maias: seco e inócuo como o aceno casual que se atira na rua a um quase desconhecido. 
Pelo meio fica a história misteriosa e pungente dum homem violentamente apaixonado que nunca chega a possuir o objecto da sua paixão. 
E, no entanto, Elisa também quer o amor de José Matias: mas, como honesta mulher casada que é – ainda que de um velho doente –, nunca permitirá que se estilhace a fina mica que separa a atracção física já sinalizada da paixão preparada para invadir. 
Finalmente viúva, espanta-se perante a distância que José Matias se impõe – a pontos de se fartar da espera e casar com outro homem. 
Enviuvada pela segunda vez, e mantendo-se a casta teimosia do seu ainda e sempre amado, arranja então um amante. Pudera... 
Em contraponto, a enigmática (?...) personagem principal – que agora todos acompanhamos até à tumba – estoira uma fortuna recém-herdada no jogo e em bebedeiras desconjuntadas. Dá mesmo uma festa-escândalo com tudo o que é meretriz do Bairro Alto
Acaba o (fatalmente) infeliz à chuva, esquálido de alcoólico, já sem vintém no bolso – mas sempre em permanente vigilância nas imediações de Elisa. 
Estranhamente, esta obsessão não o leva a perseguir os passos da amada, mas antes os do amante desta. Só para ver se ele lhe é fiel. Fidelidade que confirma com agrado ao verificar que o homem que ocupa o seu lugar compra flores para a mulher que, afinal, José Matias ama compulsivamente. 
E fim – que «com efeito está frio». 
Quase imediatamente formulei uma teoria sobre o porquê de tão estranho comportamento. 
Na verdade, não liguei nada ao papaguear filosófico do narrador, sempre muito varrido a fortes rajadas de Hegel levemente perfumadas de Schoppenhauer. E mais uma salada de gregos (dos antigos, convenhamos). 
Antes, no entanto, ainda pensei nos patéticos despojos de Eric Satie – encontrados logo após a sua morte – e na sombra de nostalgia patente no enorme acervo de cartas de amor que o singular compositor francês escreveu ao longo da vida e nunca chegou a enviar. 
Mas depois, devagarinho, Satie fechou o piano e a minha teoria começou a ganhar terreno. 
José Matias ama ideal e absolutamente. O seu imenso amor surge exacerbado na fidelidade canina que demonstra por várias vezes através do conto – até à última. Ele aceita, compreende as necessidades físicas da bela e saudável Elisa. Ele aceita isso de tal forma que até vigia os passos... do seu animal de cobrição?!... 
Eça nunca escreveu sobre personagens especialmente complexas. Fradique Mendes será talvez a mais invulgar das criações de Eça – provavelmente porque foi a que mais capacidade inventiva exigiu do escritor e porque Antero de Quental também deu uma ajuda no arquétipo.
Mas Fradique foi construído de raiz, e, tal como Jacinto e Ega, sugere apontamentos auto-biográficos. 
A verdadeira complexidade em Eça está antes nas situações criadas e nas suas envolvências, onde evolui gente genericamente comum mas muito bem caracterizada: Abranhos, Amaro, Maria Monforte, Dâmaso, Ramires, a S. Joaneira, Luísa, Basílio e até o exótico Ega ou o sofisticado Jacinto não são nenhuns caixotes de paranóia. 
Já com as trapalhadas em que Eça os mete a história é bem outra. 
Como o prova o caso do vulgaríssimo José Matias – que, quis a Natureza (e Eça principalmente), era sexualmente incapaz. 
Ou seja: um coitado dum impotente. 
Matias está próximo da amada enquanto ela está casada com um velho doente – tão incapaz como ele próprio. 
Quando Elisa casa pela segunda vez – e afinal com uma segunda escolha –, a distância a que o protagonista desta paixão não consumada se coloca explica-se pelo inevitável ciúme carnal que então sente e não controla: o marido agora é viril! 
Tudo muito compreensível. 
Ele odeia a situação, mas sabe que o culpado só tem um nome: o seu – José Matias de Albuquerque, mais a sua ignóbil insuficiência, que recusa confessar à amada. 
E como nada pode fazer para alterar os factos, entra resolutamente em dissipação. 
O banquete de prostitutas ilustra a catarse que se auto-impõe. 
Já na miséria, um assomo de dignidade residual impede-o de aceitar a caridade ‘anónima’ de Elisa. Esta réstia de orgulho masculino está em perfeita sintonia com o silêncio a que se remete sobre a real razão porque não estão os dois juntos – como pedem os seus corações.  
Ao vigiar os passos do amante da sua amada, o pobre do José Matias já só quer assegurar – totalmente despojado que está doutras pretensões – a felicidade possível da mulher que amará até à Eternidade eventual, que um dia acabará por chegar. 
E, afinal, o que fazem ali uma data de gregos antigos, mais o Hegel e o Schoppenhaur? Na minha sincera opinião – que diga-se de passagem não é especialmente modesta –, divertem-se a confundir parolos. 
Muito simplesmente. 
A sugestão de que José Matias é um tabuleiro onde o positivismo e o niilismo disputam uma partida de xadrez, tolhendo-lhe assim qualquer movimento ou vontade, apresenta-se-me com a consistência da névoa. 
Eu acho o escritor Eça de Queiroz bem capaz desta pequenina maldade. 
Como o acho também capaz da inaudita elegância exigível a quem pretendesse falar de uma maleita que, ao tempo, seria certamente muito complicada de abordar. 
A elegância é tal que o assunto nem sequer é aflorado. 
Como diz a professora Isabel Marnoto no seu ensaio sobre José Matias – publicado no Dicionário de Eça de Queiroz (A. Campos Matos, Editorial Caminho) e que eu li depois de devorar a matéria-prima –, este singular conto, apresentado de forma tão ambígua, deixa aberta a porta a todas as interpretações. E em qualquer época. 
Esta é a minha e parece-me razoável. 
No entanto, sei bem que, quando tornar a ler José Matias, irá por certo acontecer o que sempre aconteceu com a releitura de outras obras do escritor (e não só dele): a descoberta de pormenores que antes me escaparam, por vezes suficientes para me levarem a reconsiderar muito do que deduzira da primeira vez. 
E então talvez Satie, Schopenhauer, Hegel, os gregos e o pomposo narrador possam vir a ter outro papel na minha percepção de tão magnífica short-story
Há mais um Eça na minha vida – e eu sinto-me mais rico. 

Uma progressão no Tempo[i]

Em Eça de Queiroz e os seus clones defendi que o até então por mim ignorado José Matias era, fundamentalmente, uma fabulosa narrativa sobre o amor impossível de alguém simultaneamente vulgar e excessivo: vulgar porque é assim que o caracteriza o Filósofo (o narrador), embora até esta vulgaridade já contenha em si algum excesso; e excessivo porque se trata implicitamente de um ser hiper-romântico (nada de incomum nos finais do séc. XIX e arredores).
Na minha opinião então expressa, a que agora apenas acrescento um outro argumento, o grande problema de José Matias é tão só a sua inconfessável impotência física – razão única para a distância que impõe à amada Elisa quando esta adquire, por duas vezes, o apetitoso estatuto de jovem, bela e rica viúva disponível.
Por duas vezes também fui confrontado com uma provável leveza de apreciação na minha abordagem ao dramático personagem desta incrível história. Da primeira vez, numa troca de opiniões, Alfredo Campos Matos (para mim o mais completo biógrafo de Eça) aceitou em parte a minha generalização – mas apenas como sendo a consequência de algo muito mais profundo e complexo do que a disfunção sexual tout court.
Poderá ser assim.
Mas eu defendo que as personagens de Eça não são particularmente complexas na sua essência – talvez com a excepção de Fradique Mendes (consta que resulta da fusão de modelos de Antero, Batalha Reis e Eça num mesmo ego) e de Jacinto, que sempre me pareceu uma projecção tardia do próprio escritor. O ódio social de Juliana é profundo mas, embora espantosamente elaborado, não passa de ódio temperado a ganâncias – poderoso e rebuscado mas tremendamente elementar como sentimento.
O que me parece mais complexo em Eça não são os personagens mas sim as circunstâncias em que estes evoluem.
Matias fundamentalmente ama imenso, e ama com uma totalidade tão perene que isso o levará à morte – ou a procurá-la até a encontrar. Porque sabe que a sua paixão nunca poderá ser consumada. Foi essa a ideia com que fiquei mal acabei de ler o conto.
Agora, mais concretamente no passado dia 25 de Novembro de 2009, na inauguração das novas instalações da Escola Secundária Eça de Queirós, nos Olivais, onde estive como convidado – e a propósito da minha reafirmação da característica fundamental que na minha opinião explica o estranho comportamento de José Matias –, um dos presentes propôs antes a melancolia como sendo o principal condimento da sua estrutura.
Curiosamente, este termo acabaria por se virar a meu favor como um vento de bolina – numa altura em que me embrenhava na leitura de Ao encontro de Espinosa, do neurocientista António Damásio.
E porquê este inopinado favorecimento do meu raciocínio?
Muito sumariamente, Damásio explica-nos ao longo do seu brilhante livro que aquilo que somos e fazemos resulta sempre dum permanente diagnóstico cerebral e interactivo do estado do organismo como um todo, e do negócio recíproco entre emoções e sentimentos. Torna-se assim claro que qualquer alteração das condições neurobiológicas de um ser acarretará sempre uma qualquer alteração no seu comportamento mental e/ou físico, dada a interacção e a certa reciprocidade dos efeitos de tal perturbação – sublinhando-se assim o que já se observava em O erro de Descartes.
Com Damásio a espreitar-me por cima do ombro, dei comigo a pensar que se a melancolia pode porventura resultar em impotência física – e seria óptimo saber o porquê da tal melancolia –, então o contrário deve ser ainda mais verdadeiro (derive a suposta incapacidade de dano corporal, de trauma psicológico, ou de uma qualquer disfunção neurológica).
Foi nesta reversibilidade de sentimentos e emoções físicas que parti para uma leitura em sentido inverso do sem dúvida enigmático conto de Eça (hoje reconheço-o melhor assim).
Ao terminar o seu monólogo virtual – e depois de observada a bizarra mas sincera homenagem que Elisa envia ao recém-falecido através do seu amante, um mero apontador de obras –, o Filósofo lembra ao sujeito passivo (o leitor) a aparente ambiguidade do José Matias:
Grande consolo, meu amigo, este apontador com o seu ramo, para um Metafísico que, como eu, comentou Espinosa e Malebranche, reabilitou Fichte, e provou suficientemente a ilusão da sensação! Só por isto valeu a pena trazer à cova este inexplicado José Matias, que era talvez muito mais que um homem – ou talvez ainda menos que um homem…
Ora se podemos considerar que Matias, o «coração de esquilo», poderia ser «muito mais que um homem» dada a enorme firmeza da sua paixão, também podemos considerar que ele seria «ainda menos que um homem» porque lhe faltava algo de fundamental para que fosse simplesmente um homem inteiro – nem a mais, nem a menos.
A ciumeira despertada pelo segundo casamento de Elisa, que finalmente encontra alguém que lhe explique o que é a masculinidade no seu activo pleno, desaparece entretanto do comportamento de José Matias, muito misteriosamente, quando a sua eterna e obrigatoriamente platónica paixão toma um amante – por morte súbita do potente segundo marido.
O personagem central muda então de atitude: deixa de roer o duro osso do ciúme, preocupando-se antes em saber se o novo parceiro íntimo de Elisa, o simplório mas crivelmente viril apontador de obras, lhe é fiel…
Haverá comportamento mais improvável?
Foi então que, recuando mais um pouco, me lembrei da festa (ou encenação) semi-orgíaca que José Matias promove, perante uma Lisboa escandalizada:
São desse tempo algumas das suas extravagâncias lendárias… Conhece a da ceia? Uma ceia oferecida a trinta ou quarenta mulheres das mais torpes e das mais sujas, apanhadas pelas negras vielas do Bairro Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e gravemente, melancolicamente, posto na frente, sobre um grande cavalo branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça, para saudar a aparição do Sol!
Não mostrará esta festa de prostitutas, com cavalo branco a comandar, uma qualquer farsa mórbida e auto-flagelante, onde, ao mesmo tempo, se entrevê o mapa emocional com a cartografia completa dum comportamento físico incapaz, e, por isso, obrigatoriamente virginal, que a brancura da montada acentua de forma melancolicamente histriónica? – o mesmo físico traidor que o Filósofo parece invocar no contraditório balanço final que faz de José Matias quando o caracteriza como sendo «talvez ainda menos que um homem», ou, presumivelmente, um homem incompleto?…
A este propósito, lembrei em Eça de Queiroz e os seus clones o músico francês Erik Satie, que foi encontrado morto na sua paupérrima casa – onde, entre muitas tralhas, lhe descobriram um conjunto de intensas cartas de amor que na realidade nunca tinha chegado a enviar, mas que guardava ciosamente ordenadas por datas e atadas por fitas de cetim que apartavam os anos da sua não-expedição.
Claro que Satie era um melancólico.
Mas era também um ser estranhíssimo, com fixações místicas e experiências monásticas – e, acima de tudo, senhor duma partitura totalmente despojada de ornamentos modernos e harmonias de grande efeito. Um lunático genial para muitos, entre os quais me revejo totalmente quando oiço algumas das suas gymnopédies ou a Sonnerie de la Rose & CroixAir du grand Prieur… 
Convenhamos que José Matias não era nada disto.
Convenhamos ainda que ele não é real como pessoa, mas apenas como personagem de um escritor, que a ergueu e lhe deu ânimo vital no átrio da realidade.
E o que seria da realidade em Eça sem o manto diáfano da sua magnífica fantasia? …
Os filósofos gregos, Espinosa (quase um moderno evolucionista), Malebranche (um crente de Descartes) e o instável Fichte (um hegeliano proto-nihilista) fazem ali o quê, afinal?
Na minha sempre imodesta opinião toda esta gente está ali a ajudar Eça na criação da espessa névoa onde o escritor, com elegância superior, escondeu uma crueza da realidade mais elementar. 



Nota final

Não deixa de ser também curioso que apenas possa acusar Espinosa de suposta cumplicidade filosófica na elaboração de José Matias, porque uma das suas passagens da Parte II da Ética, citada por António Damásio, parece-me particularmente esclarecedora:
«O objecto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, o corpo tal como actualmente existe […] E daí que o objecto da nossa mente seja o corpo tal como existe e nada mais».
Ou seja: até um presumível platonismo exacerbado, talvez viável na presença de uma Elisa irremediavelmente casta, fará apenas parte da névoa que Eça, a meu ver, espalhou por todo o seu conto, tal como os matizes e contrastes escolhidos pelo pintor acrescentam volume e dão profundidade ao seu quadro. 

[i] Esta adenda foi publicada na secção Queridos Mortos do blogue É Tudo Gente Morta, a 20 de Julho de 2010 com o título José Matias de Albuquerque


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

CAPÍTULO XI – Perversões em Amaro



A descoberta de uma curiosa e circunstancialmente cómica placa toponímica fez-me imaginar, na altura, duas situações de todo inverosímeis, que só valem pela eventual diversão que possam proporcionar. Ou muito pelo contrário. 
A primeira recorria à encarnação de uma das mais célebres personagens de Eça (Amaro), que teria sobrevivido à passagem do século – e ao escritor, portanto –, tornando-se no retiro da velhice num bonacheirão e caridoso padre, muito arrependido do seu tumultuoso passado, e que, através de múltiplas obras de caridade, fora adquirindo paulatinamente o estatuto de benfeitor. 
Ainda que de dimensão meramente municipal. 
A outra, mais maldosa, recorre ao mesmo processo de transmigração, fazendo saltar a personagem da obra para a vida real: Amaro afinal existe, dobra efectivamente o século, mas não se arrepende de coisa alguma, continuando até ao fim dos seus dias a ser o inveterado patife de que dele se faria ideia. 
No entanto, dada a inefável glória que a sua personalidade literária haveria de emprestar a certos realizadores, produtores, actores de cinema e televisão (e quiçá modelos!), tal grupinho de beneficiários teria feito uma ‘vaquinha’ com o objectivo de convencer uma pequena autarquia (para não dar muito nas vistas!) a imortalizá-lo em nome de rua. 
O facto do homenageado ser um ‘benemérito’ sediado no século passado, enquanto os seus alegados beneficiários o serem de facto já no séc. XXI, seria apenas um feliz acaso que ajudaria a confundir potenciais curiosos... 
E a bem ver, Amaro até merecia tamanha gratidão. 
Serve todo este pot pouris de disparates para emprestar algum pendor cénico ao início de uma crítica às mais recentes adaptações cinematográficas e televisivas de Eça. Em concreto, falo das mais ou menos grotescas adaptações do romance O Crime do Padre Amaro – o qual, obviamente, nada tem a ver com o clérigo homónimo, alvo de singela homenagem na simpática freguesia de Lavra, concelho de Matosinhos, onde a imagem que aqui reproduzo foi captada. 
Remetendo-me ao mais elementar senso comum no que respeitou à tentativa de criticar as tais adaptações cinematográficas, tive sempre bem presente aquilo que penso sobre o livro que lhes serviu de base. 
Com mais de meio século de vida, eu possuo naturalmente uma visão já muito sedimentada sobre o significado da obra em questão. Porventura, a ideia que faço dela (li-a pela quarta vez há dois anos) estará de acordo com a opinião de algumas das pessoas que a leram.
Mas não de todas – certamente (1). 
Essa foi uma das razões por que me socorri também da interpretação de alguém bem mais novo do que eu: a minha filha Joana que, do alto dos seus 27 anos, preza muito a sua firme e desassombrada opinião, por norma bem fundamentada e estruturada. 
Mas comecemos pelas minhas ideias sobre tão (ainda!) controverso livro, que mereceu à época da primeira edição o seguinte aviso do pai de Eça: 
«Nunca escrevas nada que uma senhora não possa ler»... 
Amaro e os seus vários crimes são apenas consequência de algo comum no Portugal (e não só) do séc. XIX: uma Igreja acomodada, entorpecida, corporativa e, consequentemente, pouco se ralando com a real vocação dos seus acólitos.
Porque esta igreja é, antes de tudo, um fim em si. 
Os actos de Amaro representarão assim o natural corolário de um grande desequilíbrio matricial: formado na regra burocrática do seminário, Amaro é já um hipócrita habilitado quando de lá sai. Os remorsos pontuais que sente durante o desenrolar do drama em que se embrulha revelam somente a sua inexperiência e falta de mundo. 
Tudo isto é próprio da Natureza Humana, porque, de um modo geral, o homem adapta-se às circunstâncias – por mais estranhas e complexas que estas se apresentem. 
E é por esta razão que considero impossível reconstituir a tensão daqueles factos – relativamente comuns à época em que são relatados – mais de um século depois e na realidade que actualmente atravessamos. 
Porque, se a Natureza Humana se mantém estruturalmente idêntica ao que tem vindo a ser, já com as circunstâncias onde o homem se move não se passa bem a mesma coisa. 
A Igreja de hoje tem uma real preocupação vocacional; já no séc. XIX – e mesmo em boa parte do séc. XX – era bastas vezes apenas um meio de ascensão social, de sobrevivência acima da ralé paupérrima e inculta. 
Da mesma forma, não podemos comparar os padres Capuchinhos que acompanhavam os navegadores portugueses nos séculos XVI e XVII à Índia, ao Brasil e ao Japão – em missão essencialmente política – com os muitos padres das mais variadas ordens que hoje envergam os seus hábitos, no meio de África e dos maiores horrores, com autêntico espírito de missão não só pastoral mas também humanista. 
No seu livro, Eça utiliza Amaro para fazer um retrato em movimento do estado geral das coisas da Igreja do seu tempo. Essa crítica objectiva – em que muitos, que não eu, vêem também uma denúncia concreta do celibato dos padres – granjeou-lhe inúmeros inimigos, que se foram estendendo no tempo. 
E não é por acaso que esta obra permanece no Index até bem tarde no séc. XX, contando com o repúdio oficial da igreja portuguesa do período salazarista, da qual se fez porta-voz o padre Allyrio de Mello – professor de filosofia do Seminário de Aveiro
Em Eça de Queiroz – o exilado da realidade, o padre Allyrio tenta desmontar o escritor utilizando uma metodologia semelhante à dos românticos – que, por regra, empolavam o erro ou o excesso de pormenor na sua ácida crítica ao Realismo. Eis um exemplo concreto: 
«”Amaro consagrava o vinho, levantava a hóstia – Hoc est enim corpus meun! Elevando alto os braços...” Não era indispensável que Eça se sujeitasse a uma “frequência demorada e metódica da vida devota, os motivos e modos eclesiásticos”: qualquer sacristão, um simples aluno de catequese, a leitura atenta dum missal ou dum devocionário, seriam de sobra para que ele se habilitasse a corrigir tão mal adivinhada cena da Missa».
É com este tipo de preciosismo formal que Allyrio de Mello tenta descolorir uma crítica feroz a algo que, em 1945 (data de publicação deste seu agravo ao escritor e, curiosamente, no centenário do seu nascimento), ainda não se apresentava substancialmente diferente daquilo que Eça denunciara cerca de 70 anos antes. 
Hoje, por certo, o romancista não inventaria uma Améliazinha ignorante e tonta a ser seduzida por um qualquer padre sem carácter. Porque isso seria falar apenas da excepção à regra – quase somente um fait divers
Talvez falasse antes de pedofilia e do seu silenciamento ao nível das altas e médias esferas da igreja, ou da meritocracia ambígua e elitista duma Opus Dei, ou talvez ainda dos crimes económicos com ligações à prostituição e à droga que envolveram de indignidade a cúria romana na segunda metade do séc. XX.
Estas são, pois, as principais razões para, à partida, não acreditar naquela obra trazida para os dias de hoje – com os mesmos condimentos recessos duma Leiria oitocentista.
  1. Como acima afirmei, a minha visão desta obra não será igual à de muitas outras pessoas. Destaco aqui uma crítica pessoal que me foi feita ao não considerar o drama pessoal de Amaro, optando apenas por considerar a trama do ponto de vista de Amélia - o que é verdade. No entanto, mantenho que o livro, mais do que focar os dramas individuais de cada personagem (Amaro incluído), sintetiza de forma magistral um estado de espírito e de moral da Igreja carreirista do século XIX. Afinal, sempre é uma obra do Realismo, não do Romantismo...

Uma visão contemporânea 

A meu pedido, a minha filha expôs-me um dos aspectos que descortinou na obra e que, muito sinceramente, eu nunca tomei em consideração: a pedofilia. Diz Joana:
«O abuso sexual de menores não tem só a ver com sexo consensual ou não consensual. Tem a ver com algo de muito mais delicado. No caso d’O Crime do Padre Amaro temos a Amélia, uma adolescente com as hormonas aos saltos, que começa a sentir umas ‘coisas’ que não sabe bem o que são. Ela confessa-se a Amaro. Em vez de lhe explicar o que se passa ou então nem ligar e deixar que a idade a acalme, o padre aproveita-se da situação. Amaro é jovem, é alguém a quem ela deve obediência, e é fácil conseguir que Amélia se julgue apaixonada por ele. Por isso o padre fomenta os sentimentos da rapariga, engana-a, usa o seu lado irracional sobre o qual, devido à total inexperiência, ela ainda não tem qualquer controlo. Ou seja: fá-la correr directamente para a boca do lobo. No campo exactamente oposto temos um Lester Burnham – o personagem de Kevin Spacey no filme American Beauty. Angela Hayes (Mena Suvari) tem dezoito aninhos ou coisa que o valha, é sexy, insinuante, tem fama de ‘garota de programa’, e faz-se a ele. Curtem um bocado. Mas quando ele a começa a despir, Angela deixa cair a máscara de experiente e pede-lhe para ter cuidado porque ainda é virgem. E aí ele pára...
Não só pára, como é um cavalheiro – não a humilhando. Diz-lhe que se sente honrado, que nada o faria mais feliz por ELA o ter escolhido – mas ELA merece melhor. 
Claro que Angela está a mil anos de distância de Amélia. Ao contrário desta – que não percebe o que aquilo é –, Angela, mesmo não tendo prática, conhece a teoria. Ela conhece as consequências das suas acções e está disposta a isso. Mas, ainda assim, é demasiado inocente para Lester – que não é alguém que queira corromper a inocência. 
Porque Lester é um senhor. Ao contrário de Amaro – que é um mero crápula mal formado. Inconscientemente ou não, Amaro necessita de dobrar o fraco para se sentir forte. E esta é uma das premissas mais básicas da pedofilia. 
Depois, no fim, este falso padre trata a rapariga como actualmente certas pessoas tratam os seus animais de estimação – que o foram um dia: escorraça-a, abandona-a algures para morrer...». 
No entanto, a ideia de pedofilia em Amaro é forçada – porque, apesar de ignorante e tonta, Amélia efectivamente é já uma mulherzinha. 
Joana concorda comigo, dizendo apenas que «Amaro serviu-se de uma metodologia idêntica à utilizada por muitos pedófilos».
E o facto é que esta ideia sublinha ainda mais uma certa sordidez primária mal disfarçada n’O crime: criado e amamentado em fraca escola, Amaro afia as suas garras subitamente descobertas na primeira boa oportunidade que se lhe depara. 
O meio medíocre e morno, os arranjinhos confirmados na personagem da S. Joaneira, a ainda tenra e inconsciente ovelha, a impunidade quase absoluta dum estatuto social de grande prestígio e – acima de tudo – a inexistência duma vocação verdadeira, produzem todo o resto. 
Como afirmei no início deste capítulo, os pontuais rebates de consciência apenas parecem representar empecilhos momentâneos na vida deste jovem padre – ainda inexperiente no mundo exterior, mas já muito hipócrita e calculista na gestão da sua vontade e na consumação dos seus actos. 
Amélia representa, afinal, uma espécie de tirocínio ao recém-descoberto estatuto de carreirista deste Amaro já muito distante da fé no seu deus. 
Estatuto que defenderá até ao fim e sem qualquer escrúpulo. 
Mas, como também antes disse, Amaro já não representa a imagem genérica da Igreja dos dias de hoje. 
Assim, e usando um pouco de linguagem científica, esta espécie de paradoxo temporal dita o completo fracasso das adaptações cinematográficas que pretendem modernizar O Crime... – para mim, o expoente máximo do realismo em Eça. 
Vamos agora a elas. 

Um mexicano patético... 

Sempre imaginei que um romance tremendo como O Crime do Padre Amaro tinha matéria para permitir um filme fantástico – talvez mais do que qualquer outro livro de Eça, pois são já várias as transposições dos seus escritos para cinema ou televisão. 
Foi portanto com enorme expectativa que vi o anúncio duma versão mexicana. 
Confesso que, quando soube do pequeno terramoto que tal filme estava a causar no México, a ideia divertiu-me. Razões simples: a base de trabalho era um dos melhores e mais perigosos (socialmente falando) livros do meu bisavô, e o facto da polémica aparentemente se reinstalar na mesma zona nebulosa que ele explorara há 125 anos atrás dava à obra um forte estatuto de intemporalidade.
Depois, quando li na revista portuguesa Focus o realizador Carlos Carrera afirmar que «agarrámos na essência da história», senti-me leve como um pedaço de névoa. «Ora ainda bem», pensei – espicaçado no entanto por uma curiosidade corrosiva e metódica em relação ao transporte de todo aquele complicado processo até uma putativa realidade actual em longitude tão distinta.
Mas talvez não existisse uma diferença especialmente profunda entre a Leiria de 1870 e um vilarejo qualquer do México actual. Pensei que isso seria possível – sem qualquer espécie de ‘racismo cultural’ ou quejandos. Apenas achei que isso era possível. 
Enganei-me. 
Um dia, ainda sem ter visto o filme, entrei em estado de alerta: já havia polémica em Portugal! E isso é que já não era de todo natural! Porque toda a gente por aqui diz que leu o livro. E mesmo que isso não seja minimamente verdade, deveria haver algum pudor intelectual (proporcional à suposta experiência já vivida) do ‘nosso’ lado. 
Mas as razões da polémica nacional eram de teor muito diferente – a bem dizer oposto – dos protestos mexicanos: a Sociedade Portuguesa de Autores não queria que o filme aqui fosse passado – pelo menos com aquele título! Mas também não se percebe bem como pretenderia a SPA fazer cumprir tais desideratos... 
Argumentava-se em jornais e revistas que o guião não respeitava de modo nenhum o texto original – nem um pouco! E defendia-se, do outro lado da barreira, que a criatividade não devia ser coarctada. 
No dia 26 de Setembro (2002) leio, com total estupor, o que um crítico de cinema do diário espanhol El País dizia do filme, acabado de ser exibido pela primeira vez na Europa, em San Sebastian
«(...) Nobre, livre, generoso e terno...». 
Não consegui ler mais nada naquele instante. 
Um imenso vómito mental, uma raiva medonha assolou o meu coração: «Então pega-se no livro mais terrível de Eça e faz-se daquilo um patético drama agridoce?!» – gritei interiormente. 
Entretanto vi o filme, numa sessão de estreia com pouco mais de 40 pessoas. Não o achei nem bom nem mau. 
Antes pelo contrário... 
Anuncia-se que o filme tem por base um livro que toda a cultura católica latina conhece melhor ou pior, pegando-se simplesmente num padre quase assustado e numa adolescente urdida de desejos. Depois mistura-se os dois num pastiche de cor local (uma data de traficantes de cocaína, grupos de libertação, umas facadas, beatas histéricas, um jornalista denunciante – porque também namorado enganado! –, mais uns abades calculistas) e crisma-se garrafalmente este cocktail azedado como sendo O Crime do Padre Amaro
Mais nada!, já está tudo feito e é sucesso garantido – porque sim! 
O que ali há, para além de actores razoáveis e de uma excelente produção telenovelística ao melhor estilo sul-americano, é uma atitude publicista de contornos mais do que duvidosos. Confirmada no falso espanto do realizador perante o «inusitado e inexplicável sucesso» da sua obra – responsabilidade que modestamente atribui, quase em exclusivo, à exagerada reprovação protagonizada pela igreja mexicana. 
E quando se repara como funcionou este ‘escândalo’ pré-programado para o êxito mediático, apelando simplesmente à polémica oficial, convém lembrar que a polémica, mesmo quando falsa, é das actividades que maior e mais rápido retorno dá ao homem antes do crime. 
Mas esta digo-a eu – armado em sentencioso. 
Comparado com o livro, o filme é uma história irremediavelmente assassinada. E a ironia é que Carlos Carrera chegou a milionário em três meses apenas (é obra!), coisa que Eça não conseguiu em toda a sua vida – a maior parte dela realmente criativa. 
Diz Carrera, a rir, que espera que os portugueses lhe «perdoem o atrevimento de ter adaptado o romance de Eça de Queiroz». Não sei o que é que os portugueses pensam, mas sei que alguns não lho perdoarão nunca. Outros, como eu, estar-se-ão borrifando para tão vulgar epifenómeno – quanto mais não seja porque não há nada a fazer ou sequer isso seja realmente muito importante: afinal, trata-se apenas de mais um ser que enriqueceu de forma rápida. Coisa vulgar – portanto. 
Mas há algo que não percebo, ou que então percebo bem demais. 
Diz o realizador mexicano, no final duma entrevista ao ‘JN’ (10-11-02), que o filme também aborda a pedofilia. Será pedofilia por parte de Amélita e de todo o seu vulcanismo hormonal, que terão deixado o pobrecito Amaro de quatro-no-acto – como diriam os nossos emotivos irmãos brasileiros na sua verborreia plástica? Será que o realizador Carrera acha que o ‘seu’ Amaro, praticamente imberbe, cheio de crença na sua vocação religiosa induzida a partir do alfobre clerical, permitiu um acto de pedofilia contra si ao deixar-se deglutir pela roliça Amelinha mexicana? 
Ou foi ele o imperdoável pedófilo, numa zona do Mundo onde é vulgar a maternidade aos 14/15 anos? 
Então como classificar um sexagenário que consegue abusar continuamente de uma criança de seis ou sete anos? Que nome dará o realizador Carrera a tal personagem? Pedofilão?! Pedofilaço?... 
Em Eça – como diz a minha filha –, Amaro actua de certa forma como um pedófilo porque, objectivamente, se aproveita duma rapariguita palerma, completamente incapaz de destrinçar a realidade no meio da sua tempestade púbere. 
Em Carrera, Amaro e Amélia estão no mesmíssimo patamar – e o actor assim o dá a entender. Porque ele é igualmente uma vítima do destino, e, em pleno enterro, exibe a aura inequívoca de infaustoso armadilhado. 
Ora isto pode motivar pena por Amaro! – e comentários tão melados como os do crítico de cinema do El País
A personagem de Eça nunca se apresenta como um verdadeiro condenado – mas antes alguém que tudo fará para continuar a sua boa vidinha, depois de um muitíssimo desagradável episódio envolvendo saias. 
Esta é a abissal diferença entre as duas personagens, e aqui está um verdadeiro enigma cinematográfico (ou será de marketing populista?) que só o realizador mexicano poderá explicar completamente – enterrado que está no seu potezito de ouro até ao cocuruto do sombrero, algures, lá no fim do arco-íris... 

... E o sexo da portuguesa 

Sobre a versão portuguesa nunca tive a menor dúvida. Relembro as palavras de Francisco Penim, da SIC, na sua sintética explicação sobre o tão inusitado êxito de bilheteira desta realização/produção: 
«Tudo foi pensado numa perspectiva comercial dirigida ao público televisivo»... 

Cartoon de Nuno Markl
Para quê acarinhar expectativas, perante tal bocadinho de sonho editado para plasma gigante de alta definição?! 
Só se fosse completamente doido... 
E se dúvidas houvesse, uma breve notícia num prestimoso magazine de trivialidades nacionais dissipou-mas de vez. Dizia-se tudo, lá na ‘Lux’, a propósito de concorrido jantar que comemorava o sucesso conseguido por mais este brilhante monumento da cinematografia portuguesa – que amontoou o respeitável número de 363 mil ‘espreitas’ e umas quantas centenas de reais espectadores. 
O tal jantar, que naturalmente contava com a maioria dos actores do propalado crime, teve lugar num restaurante com um nome bem de acordo com a situação: o ‘Espírito dos Tachos’. 
O scoop era breve mas polpudo: «A ausência de Soraia Chaves foi notada por todos, até porque ela é a protagonista do filme (...)». Depois fica-se a saber que a «estrela principal» do filme português, baseado na obra literária O Crime do Padre Amaro, não esteve no dito repasto festivo por se encontrar no Brasil – a assistir ao Carnaval do Rio
No entanto isso até que fazia algum sentido: finalmente, a pessoa certa estaria no lugar certo. 
A «protagonista do filme»?... E então o Amaro?!?... 
Mas é claro que sim! Soraia Chaves explicou aos portugueses como é que uma sua patrícia tem orgasmos múltiplos! Como não haveria de ser a protagonista?! O mesmo processo não é utilizado em spots publicitários para vender champôs e água mineral aromatizada?! 
Só podia mesmo ser um estrondoso êxito. 
Pegou-se portanto numa obra de arte e fez-se dela um rico adereço publicitário. Exactamente ao contrário de certa publicidade realmente boa, que consegue por vezes ter assomos de autêntica genialidade artística. 
Coisas da vida. 
Como não consigo sequer considerar que tal subproduto da cinematografia nacional seja de facto um filme – e porque abomino a utilização dum título maior de Eça como mero engodo promocional –, esta ‘coisa’ estúpida passará a partir de agora a ser nomeada aqui apenas pelas iniciais: OCPA (não confundir com OPCA, que é uma digna empresa de construção civil e obras públicas com bom nome na praça). 
Visto OCPA, sobrou o exercício divertido de imaginar uma mulher bombástica como a modelo profissional Soraia Chaves a ser uma qualquer Amélia, algures, num bairro-problema dos arredores de Lisboa. 
Mas (e só podia!) esta Amélia não é ingénua como a original. 
O guionista de OCPA transforma-a aqui em capitosa e vivida mulher que, talvez por desporto ou spleen sazonal, se dedica com ímpeto a perverter um padreco próximo do protoplásmico. 
Claro que é bem mais fácil imaginar que esta mulher, com semelhante aspecto, vivendo em semelhante sítio, já há muito estaria por conta dum qualquer senhor bem instalado na vida – ou, no mínimo, frequentaria com assiduidade os melhores locais da capital onde é possível adquirir tão específico estatuto. 
Ou ainda – mas apenas nas melhores hipóteses –, talvez fosse aprendiz de cabeleireira, ou modelo... 
Em OCPA não! 
Ali Amélia é amante de perigoso meliante e está farta disso, coitada! 
Mas vejamos o que transforma num repente a jovem e saudável Soraia em superstar local do écran: nada mais ali interessa senão ela e o que ela faz – tal como veio ao mundo. 
A modelo interpreta ali um papel muito antigo e bem conhecido de todos, mas que só pode ser desempenhado com verdadeiro êxito por alguém do sexo feminino: a simulação do orgasmo. Coisa que, como se sabe desde o princípio dos tempos, é muito difícil de macaquear com real eficácia pelos utentes do género oposto. 
Uma nítida e enorme desvantagem masculina – pelo menos no que respeita a aspectos tão específicos desta dramática arte... 
Ora tais pormenores coevos, exibidos com todo o empenho por uma portuguesa (e para mais por uma portuguesa de tão primorosa orografia), constituem apelo mais do que suficiente para o bacoquíssimo voyeurismo nacional. 
Fosse a protagonista uma estrangeira (mesmo com um físico semelhante) e OCPA seria apenas mais um péssimo filme com sexo à mistura. 
Porque é disso que se trata. 
É claro que o secundário Nicolau Breyner dá um padre razoável – aliás, um papel que o popular actor já desempenhou várias vezes com maior ou menor brilho. 
Mas sobre o resto nem é bom falar: há uma data de polícias e ladrões, droga-loucura-morte, tiros e assobios, uma mistura imprestável de maus com bons actores e outros que nem o são de todo, uma parelha gay, fungadelas e espirros de coca (com Amaro há sempre cocaína por perto!), fugas em carros perseguidos, rappers, despistes e rusgas, uma S. Joaneira ao melhor estilo de assumida caften de prostíbulo – e que se lixe o Eça porque a ‘coisa’ está a andar e vai ser um sucesso! 
Pois foi. 
E porque sim – mais uma vez. 
Vejamos: em tão arrevesado guião, Amélia suicida-se (até que enfim!...), e Amaro nem chega a cometer objectivamente algo de parecido com um crime. 
Limita-se, de forma vulgar, a cair na tentação. 
Ora se fosse este o cerne da questão, então Eça teria errado em toda a linha na escolha dum título para a sua obra – já que há nela (como na vida em geral) mais padres tentados. 
O título poderia ser talvez «As tentações dos padres Amaro, Aurélio, Hermenegildo, Júlio, Epaminondas, Zeferino, Gualter, Arménio – já para não falar nas do recordista nacional absoluto, o saudoso abade de Trancoso, que também se safou ileso (mas foi por pouco!)...» – e por aí fora. 
Não era prático, convenhamos. 
Curiosamente, desta vez, a sempre atenta e prestimosa Sociedade Portuguesa de Autores não tugiu nem mugiu. Será que já nem isso sabe fazer? Nem mesmo a respeito dum certo CD (anunciado como contentor de música) que, de forma absolutamente impune, se vende debaixo do guarda-chuva que é o título de Eça? 
E a SPA já não saberá mesmo tugir nem mugir ou terá antes condescendido – por se tratar de importante produção nacional? 
Seria interessante de saber. 
É claro que nem o arrazoado populista do mexicano Carrera nem o peep-show português programado para televisão em horário um bocadinho nobre farão qualquer espécie de história: nunca serão mais do que péssimos e momentâneos fogachos. 
O desgaste do primeiro já o atirou para as prateleiras do material descartável, bom para exportar para a Rússia e para todo o imenso e sempre infeliz Terceiro Mundo. 
Quanto ao segundo, sobreviverá por momentos no merchandising da bolha televisiva nacional (esticado até ao telenovelo e reposto de quando em vez), desaparecendo depois para sempre, algures na zona C das lojas de aluguer de filmes – e no sempre infeliz e imenso Terceiro Mundo. 
E também na Rússia – claro está. 
No preciso momento em que escrevia estas linhas (03h46 de 26-03-2006), passava na televisão uma versão brasileira d’Os Maias
De imediato, a minha memória serviu-me um momento com mais de 40 anos que assenta aqui que nem uma luva: a grande tristeza e indignação que a minha tia-avó Maria d’Eça de Queiroz de Castro sentiu quando soube que, no Brasil, existiam edições pirateadas das obras do seu pai que mais não eram do que resumos das cenas de maior erotismo nelas descritas.
Comparando agora o que sobrou do tão mal aproveitado Amaro com Os Maias brasileiros – e descontando as críticas que também se podem fazer com toda a justiça a tal trabalho (que raio faz ali A Relíquia?!?) –, é-me impossível não gritar bem alto: Brasil!, viva o Brasil!... 
Três dias mais tarde, li nos jornais um obituário sobre o grande escritor polaco Stanislaw Lem – que muito aprecio. Ali fiquei a saber que Lem nunca gostou das adaptações que realizadores como Andrei Tarkovsky e Steven Soderberg fizeram, em tempos muito diferentes, do seu enigmático romance de ficção científica de título Solaris. E imediatamente constatei a sorte enorme que coube nesta matéria ao autor de Memórias Encontradas Numa Banheira, A Voz do Dono ou Biblioteca do Século XXI.