sexta-feira, 18 de novembro de 2011

CAPÍTULO XI – Perversões em Amaro



A descoberta de uma curiosa e circunstancialmente cómica placa toponímica fez-me imaginar, na altura, duas situações de todo inverosímeis, que só valem pela eventual diversão que possam proporcionar. Ou muito pelo contrário. 
A primeira recorria à encarnação de uma das mais célebres personagens de Eça (Amaro), que teria sobrevivido à passagem do século – e ao escritor, portanto –, tornando-se no retiro da velhice num bonacheirão e caridoso padre, muito arrependido do seu tumultuoso passado, e que, através de múltiplas obras de caridade, fora adquirindo paulatinamente o estatuto de benfeitor. 
Ainda que de dimensão meramente municipal. 
A outra, mais maldosa, recorre ao mesmo processo de transmigração, fazendo saltar a personagem da obra para a vida real: Amaro afinal existe, dobra efectivamente o século, mas não se arrepende de coisa alguma, continuando até ao fim dos seus dias a ser o inveterado patife de que dele se faria ideia. 
No entanto, dada a inefável glória que a sua personalidade literária haveria de emprestar a certos realizadores, produtores, actores de cinema e televisão (e quiçá modelos!), tal grupinho de beneficiários teria feito uma ‘vaquinha’ com o objectivo de convencer uma pequena autarquia (para não dar muito nas vistas!) a imortalizá-lo em nome de rua. 
O facto do homenageado ser um ‘benemérito’ sediado no século passado, enquanto os seus alegados beneficiários o serem de facto já no séc. XXI, seria apenas um feliz acaso que ajudaria a confundir potenciais curiosos... 
E a bem ver, Amaro até merecia tamanha gratidão. 
Serve todo este pot pouris de disparates para emprestar algum pendor cénico ao início de uma crítica às mais recentes adaptações cinematográficas e televisivas de Eça. Em concreto, falo das mais ou menos grotescas adaptações do romance O Crime do Padre Amaro – o qual, obviamente, nada tem a ver com o clérigo homónimo, alvo de singela homenagem na simpática freguesia de Lavra, concelho de Matosinhos, onde a imagem que aqui reproduzo foi captada. 
Remetendo-me ao mais elementar senso comum no que respeitou à tentativa de criticar as tais adaptações cinematográficas, tive sempre bem presente aquilo que penso sobre o livro que lhes serviu de base. 
Com mais de meio século de vida, eu possuo naturalmente uma visão já muito sedimentada sobre o significado da obra em questão. Porventura, a ideia que faço dela (li-a pela quarta vez há dois anos) estará de acordo com a opinião de algumas das pessoas que a leram.
Mas não de todas – certamente (1). 
Essa foi uma das razões por que me socorri também da interpretação de alguém bem mais novo do que eu: a minha filha Joana que, do alto dos seus 27 anos, preza muito a sua firme e desassombrada opinião, por norma bem fundamentada e estruturada. 
Mas comecemos pelas minhas ideias sobre tão (ainda!) controverso livro, que mereceu à época da primeira edição o seguinte aviso do pai de Eça: 
«Nunca escrevas nada que uma senhora não possa ler»... 
Amaro e os seus vários crimes são apenas consequência de algo comum no Portugal (e não só) do séc. XIX: uma Igreja acomodada, entorpecida, corporativa e, consequentemente, pouco se ralando com a real vocação dos seus acólitos.
Porque esta igreja é, antes de tudo, um fim em si. 
Os actos de Amaro representarão assim o natural corolário de um grande desequilíbrio matricial: formado na regra burocrática do seminário, Amaro é já um hipócrita habilitado quando de lá sai. Os remorsos pontuais que sente durante o desenrolar do drama em que se embrulha revelam somente a sua inexperiência e falta de mundo. 
Tudo isto é próprio da Natureza Humana, porque, de um modo geral, o homem adapta-se às circunstâncias – por mais estranhas e complexas que estas se apresentem. 
E é por esta razão que considero impossível reconstituir a tensão daqueles factos – relativamente comuns à época em que são relatados – mais de um século depois e na realidade que actualmente atravessamos. 
Porque, se a Natureza Humana se mantém estruturalmente idêntica ao que tem vindo a ser, já com as circunstâncias onde o homem se move não se passa bem a mesma coisa. 
A Igreja de hoje tem uma real preocupação vocacional; já no séc. XIX – e mesmo em boa parte do séc. XX – era bastas vezes apenas um meio de ascensão social, de sobrevivência acima da ralé paupérrima e inculta. 
Da mesma forma, não podemos comparar os padres Capuchinhos que acompanhavam os navegadores portugueses nos séculos XVI e XVII à Índia, ao Brasil e ao Japão – em missão essencialmente política – com os muitos padres das mais variadas ordens que hoje envergam os seus hábitos, no meio de África e dos maiores horrores, com autêntico espírito de missão não só pastoral mas também humanista. 
No seu livro, Eça utiliza Amaro para fazer um retrato em movimento do estado geral das coisas da Igreja do seu tempo. Essa crítica objectiva – em que muitos, que não eu, vêem também uma denúncia concreta do celibato dos padres – granjeou-lhe inúmeros inimigos, que se foram estendendo no tempo. 
E não é por acaso que esta obra permanece no Index até bem tarde no séc. XX, contando com o repúdio oficial da igreja portuguesa do período salazarista, da qual se fez porta-voz o padre Allyrio de Mello – professor de filosofia do Seminário de Aveiro
Em Eça de Queiroz – o exilado da realidade, o padre Allyrio tenta desmontar o escritor utilizando uma metodologia semelhante à dos românticos – que, por regra, empolavam o erro ou o excesso de pormenor na sua ácida crítica ao Realismo. Eis um exemplo concreto: 
«”Amaro consagrava o vinho, levantava a hóstia – Hoc est enim corpus meun! Elevando alto os braços...” Não era indispensável que Eça se sujeitasse a uma “frequência demorada e metódica da vida devota, os motivos e modos eclesiásticos”: qualquer sacristão, um simples aluno de catequese, a leitura atenta dum missal ou dum devocionário, seriam de sobra para que ele se habilitasse a corrigir tão mal adivinhada cena da Missa».
É com este tipo de preciosismo formal que Allyrio de Mello tenta descolorir uma crítica feroz a algo que, em 1945 (data de publicação deste seu agravo ao escritor e, curiosamente, no centenário do seu nascimento), ainda não se apresentava substancialmente diferente daquilo que Eça denunciara cerca de 70 anos antes. 
Hoje, por certo, o romancista não inventaria uma Améliazinha ignorante e tonta a ser seduzida por um qualquer padre sem carácter. Porque isso seria falar apenas da excepção à regra – quase somente um fait divers
Talvez falasse antes de pedofilia e do seu silenciamento ao nível das altas e médias esferas da igreja, ou da meritocracia ambígua e elitista duma Opus Dei, ou talvez ainda dos crimes económicos com ligações à prostituição e à droga que envolveram de indignidade a cúria romana na segunda metade do séc. XX.
Estas são, pois, as principais razões para, à partida, não acreditar naquela obra trazida para os dias de hoje – com os mesmos condimentos recessos duma Leiria oitocentista.
  1. Como acima afirmei, a minha visão desta obra não será igual à de muitas outras pessoas. Destaco aqui uma crítica pessoal que me foi feita ao não considerar o drama pessoal de Amaro, optando apenas por considerar a trama do ponto de vista de Amélia - o que é verdade. No entanto, mantenho que o livro, mais do que focar os dramas individuais de cada personagem (Amaro incluído), sintetiza de forma magistral um estado de espírito e de moral da Igreja carreirista do século XIX. Afinal, sempre é uma obra do Realismo, não do Romantismo...

Uma visão contemporânea 

A meu pedido, a minha filha expôs-me um dos aspectos que descortinou na obra e que, muito sinceramente, eu nunca tomei em consideração: a pedofilia. Diz Joana:
«O abuso sexual de menores não tem só a ver com sexo consensual ou não consensual. Tem a ver com algo de muito mais delicado. No caso d’O Crime do Padre Amaro temos a Amélia, uma adolescente com as hormonas aos saltos, que começa a sentir umas ‘coisas’ que não sabe bem o que são. Ela confessa-se a Amaro. Em vez de lhe explicar o que se passa ou então nem ligar e deixar que a idade a acalme, o padre aproveita-se da situação. Amaro é jovem, é alguém a quem ela deve obediência, e é fácil conseguir que Amélia se julgue apaixonada por ele. Por isso o padre fomenta os sentimentos da rapariga, engana-a, usa o seu lado irracional sobre o qual, devido à total inexperiência, ela ainda não tem qualquer controlo. Ou seja: fá-la correr directamente para a boca do lobo. No campo exactamente oposto temos um Lester Burnham – o personagem de Kevin Spacey no filme American Beauty. Angela Hayes (Mena Suvari) tem dezoito aninhos ou coisa que o valha, é sexy, insinuante, tem fama de ‘garota de programa’, e faz-se a ele. Curtem um bocado. Mas quando ele a começa a despir, Angela deixa cair a máscara de experiente e pede-lhe para ter cuidado porque ainda é virgem. E aí ele pára...
Não só pára, como é um cavalheiro – não a humilhando. Diz-lhe que se sente honrado, que nada o faria mais feliz por ELA o ter escolhido – mas ELA merece melhor. 
Claro que Angela está a mil anos de distância de Amélia. Ao contrário desta – que não percebe o que aquilo é –, Angela, mesmo não tendo prática, conhece a teoria. Ela conhece as consequências das suas acções e está disposta a isso. Mas, ainda assim, é demasiado inocente para Lester – que não é alguém que queira corromper a inocência. 
Porque Lester é um senhor. Ao contrário de Amaro – que é um mero crápula mal formado. Inconscientemente ou não, Amaro necessita de dobrar o fraco para se sentir forte. E esta é uma das premissas mais básicas da pedofilia. 
Depois, no fim, este falso padre trata a rapariga como actualmente certas pessoas tratam os seus animais de estimação – que o foram um dia: escorraça-a, abandona-a algures para morrer...». 
No entanto, a ideia de pedofilia em Amaro é forçada – porque, apesar de ignorante e tonta, Amélia efectivamente é já uma mulherzinha. 
Joana concorda comigo, dizendo apenas que «Amaro serviu-se de uma metodologia idêntica à utilizada por muitos pedófilos».
E o facto é que esta ideia sublinha ainda mais uma certa sordidez primária mal disfarçada n’O crime: criado e amamentado em fraca escola, Amaro afia as suas garras subitamente descobertas na primeira boa oportunidade que se lhe depara. 
O meio medíocre e morno, os arranjinhos confirmados na personagem da S. Joaneira, a ainda tenra e inconsciente ovelha, a impunidade quase absoluta dum estatuto social de grande prestígio e – acima de tudo – a inexistência duma vocação verdadeira, produzem todo o resto. 
Como afirmei no início deste capítulo, os pontuais rebates de consciência apenas parecem representar empecilhos momentâneos na vida deste jovem padre – ainda inexperiente no mundo exterior, mas já muito hipócrita e calculista na gestão da sua vontade e na consumação dos seus actos. 
Amélia representa, afinal, uma espécie de tirocínio ao recém-descoberto estatuto de carreirista deste Amaro já muito distante da fé no seu deus. 
Estatuto que defenderá até ao fim e sem qualquer escrúpulo. 
Mas, como também antes disse, Amaro já não representa a imagem genérica da Igreja dos dias de hoje. 
Assim, e usando um pouco de linguagem científica, esta espécie de paradoxo temporal dita o completo fracasso das adaptações cinematográficas que pretendem modernizar O Crime... – para mim, o expoente máximo do realismo em Eça. 
Vamos agora a elas. 

Um mexicano patético... 

Sempre imaginei que um romance tremendo como O Crime do Padre Amaro tinha matéria para permitir um filme fantástico – talvez mais do que qualquer outro livro de Eça, pois são já várias as transposições dos seus escritos para cinema ou televisão. 
Foi portanto com enorme expectativa que vi o anúncio duma versão mexicana. 
Confesso que, quando soube do pequeno terramoto que tal filme estava a causar no México, a ideia divertiu-me. Razões simples: a base de trabalho era um dos melhores e mais perigosos (socialmente falando) livros do meu bisavô, e o facto da polémica aparentemente se reinstalar na mesma zona nebulosa que ele explorara há 125 anos atrás dava à obra um forte estatuto de intemporalidade.
Depois, quando li na revista portuguesa Focus o realizador Carlos Carrera afirmar que «agarrámos na essência da história», senti-me leve como um pedaço de névoa. «Ora ainda bem», pensei – espicaçado no entanto por uma curiosidade corrosiva e metódica em relação ao transporte de todo aquele complicado processo até uma putativa realidade actual em longitude tão distinta.
Mas talvez não existisse uma diferença especialmente profunda entre a Leiria de 1870 e um vilarejo qualquer do México actual. Pensei que isso seria possível – sem qualquer espécie de ‘racismo cultural’ ou quejandos. Apenas achei que isso era possível. 
Enganei-me. 
Um dia, ainda sem ter visto o filme, entrei em estado de alerta: já havia polémica em Portugal! E isso é que já não era de todo natural! Porque toda a gente por aqui diz que leu o livro. E mesmo que isso não seja minimamente verdade, deveria haver algum pudor intelectual (proporcional à suposta experiência já vivida) do ‘nosso’ lado. 
Mas as razões da polémica nacional eram de teor muito diferente – a bem dizer oposto – dos protestos mexicanos: a Sociedade Portuguesa de Autores não queria que o filme aqui fosse passado – pelo menos com aquele título! Mas também não se percebe bem como pretenderia a SPA fazer cumprir tais desideratos... 
Argumentava-se em jornais e revistas que o guião não respeitava de modo nenhum o texto original – nem um pouco! E defendia-se, do outro lado da barreira, que a criatividade não devia ser coarctada. 
No dia 26 de Setembro (2002) leio, com total estupor, o que um crítico de cinema do diário espanhol El País dizia do filme, acabado de ser exibido pela primeira vez na Europa, em San Sebastian
«(...) Nobre, livre, generoso e terno...». 
Não consegui ler mais nada naquele instante. 
Um imenso vómito mental, uma raiva medonha assolou o meu coração: «Então pega-se no livro mais terrível de Eça e faz-se daquilo um patético drama agridoce?!» – gritei interiormente. 
Entretanto vi o filme, numa sessão de estreia com pouco mais de 40 pessoas. Não o achei nem bom nem mau. 
Antes pelo contrário... 
Anuncia-se que o filme tem por base um livro que toda a cultura católica latina conhece melhor ou pior, pegando-se simplesmente num padre quase assustado e numa adolescente urdida de desejos. Depois mistura-se os dois num pastiche de cor local (uma data de traficantes de cocaína, grupos de libertação, umas facadas, beatas histéricas, um jornalista denunciante – porque também namorado enganado! –, mais uns abades calculistas) e crisma-se garrafalmente este cocktail azedado como sendo O Crime do Padre Amaro
Mais nada!, já está tudo feito e é sucesso garantido – porque sim! 
O que ali há, para além de actores razoáveis e de uma excelente produção telenovelística ao melhor estilo sul-americano, é uma atitude publicista de contornos mais do que duvidosos. Confirmada no falso espanto do realizador perante o «inusitado e inexplicável sucesso» da sua obra – responsabilidade que modestamente atribui, quase em exclusivo, à exagerada reprovação protagonizada pela igreja mexicana. 
E quando se repara como funcionou este ‘escândalo’ pré-programado para o êxito mediático, apelando simplesmente à polémica oficial, convém lembrar que a polémica, mesmo quando falsa, é das actividades que maior e mais rápido retorno dá ao homem antes do crime. 
Mas esta digo-a eu – armado em sentencioso. 
Comparado com o livro, o filme é uma história irremediavelmente assassinada. E a ironia é que Carlos Carrera chegou a milionário em três meses apenas (é obra!), coisa que Eça não conseguiu em toda a sua vida – a maior parte dela realmente criativa. 
Diz Carrera, a rir, que espera que os portugueses lhe «perdoem o atrevimento de ter adaptado o romance de Eça de Queiroz». Não sei o que é que os portugueses pensam, mas sei que alguns não lho perdoarão nunca. Outros, como eu, estar-se-ão borrifando para tão vulgar epifenómeno – quanto mais não seja porque não há nada a fazer ou sequer isso seja realmente muito importante: afinal, trata-se apenas de mais um ser que enriqueceu de forma rápida. Coisa vulgar – portanto. 
Mas há algo que não percebo, ou que então percebo bem demais. 
Diz o realizador mexicano, no final duma entrevista ao ‘JN’ (10-11-02), que o filme também aborda a pedofilia. Será pedofilia por parte de Amélita e de todo o seu vulcanismo hormonal, que terão deixado o pobrecito Amaro de quatro-no-acto – como diriam os nossos emotivos irmãos brasileiros na sua verborreia plástica? Será que o realizador Carrera acha que o ‘seu’ Amaro, praticamente imberbe, cheio de crença na sua vocação religiosa induzida a partir do alfobre clerical, permitiu um acto de pedofilia contra si ao deixar-se deglutir pela roliça Amelinha mexicana? 
Ou foi ele o imperdoável pedófilo, numa zona do Mundo onde é vulgar a maternidade aos 14/15 anos? 
Então como classificar um sexagenário que consegue abusar continuamente de uma criança de seis ou sete anos? Que nome dará o realizador Carrera a tal personagem? Pedofilão?! Pedofilaço?... 
Em Eça – como diz a minha filha –, Amaro actua de certa forma como um pedófilo porque, objectivamente, se aproveita duma rapariguita palerma, completamente incapaz de destrinçar a realidade no meio da sua tempestade púbere. 
Em Carrera, Amaro e Amélia estão no mesmíssimo patamar – e o actor assim o dá a entender. Porque ele é igualmente uma vítima do destino, e, em pleno enterro, exibe a aura inequívoca de infaustoso armadilhado. 
Ora isto pode motivar pena por Amaro! – e comentários tão melados como os do crítico de cinema do El País
A personagem de Eça nunca se apresenta como um verdadeiro condenado – mas antes alguém que tudo fará para continuar a sua boa vidinha, depois de um muitíssimo desagradável episódio envolvendo saias. 
Esta é a abissal diferença entre as duas personagens, e aqui está um verdadeiro enigma cinematográfico (ou será de marketing populista?) que só o realizador mexicano poderá explicar completamente – enterrado que está no seu potezito de ouro até ao cocuruto do sombrero, algures, lá no fim do arco-íris... 

... E o sexo da portuguesa 

Sobre a versão portuguesa nunca tive a menor dúvida. Relembro as palavras de Francisco Penim, da SIC, na sua sintética explicação sobre o tão inusitado êxito de bilheteira desta realização/produção: 
«Tudo foi pensado numa perspectiva comercial dirigida ao público televisivo»... 

Cartoon de Nuno Markl
Para quê acarinhar expectativas, perante tal bocadinho de sonho editado para plasma gigante de alta definição?! 
Só se fosse completamente doido... 
E se dúvidas houvesse, uma breve notícia num prestimoso magazine de trivialidades nacionais dissipou-mas de vez. Dizia-se tudo, lá na ‘Lux’, a propósito de concorrido jantar que comemorava o sucesso conseguido por mais este brilhante monumento da cinematografia portuguesa – que amontoou o respeitável número de 363 mil ‘espreitas’ e umas quantas centenas de reais espectadores. 
O tal jantar, que naturalmente contava com a maioria dos actores do propalado crime, teve lugar num restaurante com um nome bem de acordo com a situação: o ‘Espírito dos Tachos’. 
O scoop era breve mas polpudo: «A ausência de Soraia Chaves foi notada por todos, até porque ela é a protagonista do filme (...)». Depois fica-se a saber que a «estrela principal» do filme português, baseado na obra literária O Crime do Padre Amaro, não esteve no dito repasto festivo por se encontrar no Brasil – a assistir ao Carnaval do Rio
No entanto isso até que fazia algum sentido: finalmente, a pessoa certa estaria no lugar certo. 
A «protagonista do filme»?... E então o Amaro?!?... 
Mas é claro que sim! Soraia Chaves explicou aos portugueses como é que uma sua patrícia tem orgasmos múltiplos! Como não haveria de ser a protagonista?! O mesmo processo não é utilizado em spots publicitários para vender champôs e água mineral aromatizada?! 
Só podia mesmo ser um estrondoso êxito. 
Pegou-se portanto numa obra de arte e fez-se dela um rico adereço publicitário. Exactamente ao contrário de certa publicidade realmente boa, que consegue por vezes ter assomos de autêntica genialidade artística. 
Coisas da vida. 
Como não consigo sequer considerar que tal subproduto da cinematografia nacional seja de facto um filme – e porque abomino a utilização dum título maior de Eça como mero engodo promocional –, esta ‘coisa’ estúpida passará a partir de agora a ser nomeada aqui apenas pelas iniciais: OCPA (não confundir com OPCA, que é uma digna empresa de construção civil e obras públicas com bom nome na praça). 
Visto OCPA, sobrou o exercício divertido de imaginar uma mulher bombástica como a modelo profissional Soraia Chaves a ser uma qualquer Amélia, algures, num bairro-problema dos arredores de Lisboa. 
Mas (e só podia!) esta Amélia não é ingénua como a original. 
O guionista de OCPA transforma-a aqui em capitosa e vivida mulher que, talvez por desporto ou spleen sazonal, se dedica com ímpeto a perverter um padreco próximo do protoplásmico. 
Claro que é bem mais fácil imaginar que esta mulher, com semelhante aspecto, vivendo em semelhante sítio, já há muito estaria por conta dum qualquer senhor bem instalado na vida – ou, no mínimo, frequentaria com assiduidade os melhores locais da capital onde é possível adquirir tão específico estatuto. 
Ou ainda – mas apenas nas melhores hipóteses –, talvez fosse aprendiz de cabeleireira, ou modelo... 
Em OCPA não! 
Ali Amélia é amante de perigoso meliante e está farta disso, coitada! 
Mas vejamos o que transforma num repente a jovem e saudável Soraia em superstar local do écran: nada mais ali interessa senão ela e o que ela faz – tal como veio ao mundo. 
A modelo interpreta ali um papel muito antigo e bem conhecido de todos, mas que só pode ser desempenhado com verdadeiro êxito por alguém do sexo feminino: a simulação do orgasmo. Coisa que, como se sabe desde o princípio dos tempos, é muito difícil de macaquear com real eficácia pelos utentes do género oposto. 
Uma nítida e enorme desvantagem masculina – pelo menos no que respeita a aspectos tão específicos desta dramática arte... 
Ora tais pormenores coevos, exibidos com todo o empenho por uma portuguesa (e para mais por uma portuguesa de tão primorosa orografia), constituem apelo mais do que suficiente para o bacoquíssimo voyeurismo nacional. 
Fosse a protagonista uma estrangeira (mesmo com um físico semelhante) e OCPA seria apenas mais um péssimo filme com sexo à mistura. 
Porque é disso que se trata. 
É claro que o secundário Nicolau Breyner dá um padre razoável – aliás, um papel que o popular actor já desempenhou várias vezes com maior ou menor brilho. 
Mas sobre o resto nem é bom falar: há uma data de polícias e ladrões, droga-loucura-morte, tiros e assobios, uma mistura imprestável de maus com bons actores e outros que nem o são de todo, uma parelha gay, fungadelas e espirros de coca (com Amaro há sempre cocaína por perto!), fugas em carros perseguidos, rappers, despistes e rusgas, uma S. Joaneira ao melhor estilo de assumida caften de prostíbulo – e que se lixe o Eça porque a ‘coisa’ está a andar e vai ser um sucesso! 
Pois foi. 
E porque sim – mais uma vez. 
Vejamos: em tão arrevesado guião, Amélia suicida-se (até que enfim!...), e Amaro nem chega a cometer objectivamente algo de parecido com um crime. 
Limita-se, de forma vulgar, a cair na tentação. 
Ora se fosse este o cerne da questão, então Eça teria errado em toda a linha na escolha dum título para a sua obra – já que há nela (como na vida em geral) mais padres tentados. 
O título poderia ser talvez «As tentações dos padres Amaro, Aurélio, Hermenegildo, Júlio, Epaminondas, Zeferino, Gualter, Arménio – já para não falar nas do recordista nacional absoluto, o saudoso abade de Trancoso, que também se safou ileso (mas foi por pouco!)...» – e por aí fora. 
Não era prático, convenhamos. 
Curiosamente, desta vez, a sempre atenta e prestimosa Sociedade Portuguesa de Autores não tugiu nem mugiu. Será que já nem isso sabe fazer? Nem mesmo a respeito dum certo CD (anunciado como contentor de música) que, de forma absolutamente impune, se vende debaixo do guarda-chuva que é o título de Eça? 
E a SPA já não saberá mesmo tugir nem mugir ou terá antes condescendido – por se tratar de importante produção nacional? 
Seria interessante de saber. 
É claro que nem o arrazoado populista do mexicano Carrera nem o peep-show português programado para televisão em horário um bocadinho nobre farão qualquer espécie de história: nunca serão mais do que péssimos e momentâneos fogachos. 
O desgaste do primeiro já o atirou para as prateleiras do material descartável, bom para exportar para a Rússia e para todo o imenso e sempre infeliz Terceiro Mundo. 
Quanto ao segundo, sobreviverá por momentos no merchandising da bolha televisiva nacional (esticado até ao telenovelo e reposto de quando em vez), desaparecendo depois para sempre, algures na zona C das lojas de aluguer de filmes – e no sempre infeliz e imenso Terceiro Mundo. 
E também na Rússia – claro está. 
No preciso momento em que escrevia estas linhas (03h46 de 26-03-2006), passava na televisão uma versão brasileira d’Os Maias
De imediato, a minha memória serviu-me um momento com mais de 40 anos que assenta aqui que nem uma luva: a grande tristeza e indignação que a minha tia-avó Maria d’Eça de Queiroz de Castro sentiu quando soube que, no Brasil, existiam edições pirateadas das obras do seu pai que mais não eram do que resumos das cenas de maior erotismo nelas descritas.
Comparando agora o que sobrou do tão mal aproveitado Amaro com Os Maias brasileiros – e descontando as críticas que também se podem fazer com toda a justiça a tal trabalho (que raio faz ali A Relíquia?!?) –, é-me impossível não gritar bem alto: Brasil!, viva o Brasil!... 
Três dias mais tarde, li nos jornais um obituário sobre o grande escritor polaco Stanislaw Lem – que muito aprecio. Ali fiquei a saber que Lem nunca gostou das adaptações que realizadores como Andrei Tarkovsky e Steven Soderberg fizeram, em tempos muito diferentes, do seu enigmático romance de ficção científica de título Solaris. E imediatamente constatei a sorte enorme que coube nesta matéria ao autor de Memórias Encontradas Numa Banheira, A Voz do Dono ou Biblioteca do Século XXI.

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