quinta-feira, 10 de novembro de 2011

CAPÍTULO III – J. H. Saraiva convida picuinhas (2ª parte)



NOS SAPATOS DO PROFESSOR


Sobre o ponto que agora me interessava, JHS surpreendeu-me com um «fico muito reconhecido pela sua anuência»... Sugere-me apenas que eu burile «algumas expressões» sobre o autor da coluna Avenida da Liberdade – o Sr. Valdemar. «Somos todos companheiros nesta pequenina República de letras e alguma cortesia académica só enobrece a qualidade dos torneios» – aconselha, sempre na sua forma elevada e bem-educada.
Ora, ora!..., cortesia académica? De quem para quem, afinal? Eu nem sou académico! – limito-me a adorar as vistas...
E quanto ao hipotético receptor de tal cortesia (que não sei se é académico nem isso me interessa um bocadinho que seja), ele só me fazia ressoar na cabeça o velho provérbio português onde se canta que «quem não sente não é filho de boa gente». 
Mas, como se tratava então de uma iniciativa de JHS, admiti alisar um pouco a letra. 
Coisa que, quis o Destino, acabaria por não acontecer.
Sobre a questão de fundo, JHS reitera o seu dogma jurídico e supõe – mais uma vez erradamente – «que nenhum jurista diria o contrário».
Considera no entanto que «nestes pleitos a última palavra pertence ao público. E daí vem o meu interesse na publicação de todo o conjunto da nossa correspondência, tanto pública como privada». 
Ora muito bem! – pensei eu.

Seja de que maneira for, o diálogo que mantive com este senhor foi sempre, além de produtivo e muito enriquecedor, de excelente nível e respeito mútuo. Ele elogiou-me publicamente sobre tal qualidade da nossa diatribe, e eu agora certifico o mesmo no que lhe diz respeito.
Acontece que acontecem por vezes coisas curiosas às pessoas, e em especial àquelas que estão totalmente embrenhadas – como que envenenadas – num determinado assunto.
Picasso dizia que a inspiração é algo de tão fugaz que o melhor que há a fazer é estar sempre a trabalhar para o caso dela decidir aparecer. 
E esta é uma bela metáfora para o que se seguiu, por uma simples razão: eu já assumira então que o livro iria acabar por sair, e mantinha, portanto, uma contínua e cada vez mais profunda actualização dos meus conhecimentos sobre a vida de Eça. 
Já lera uma data de boatos, ensaios de várias tendências, resmas de notas e opúsculos biográficos, as várias reticências que se punham aos factos dados como oficiais... 
Sabia da misteriosa mas nunca encontrada carta, que estaria nas mãos de gente próxima dos Carneiro Pizarro, onde era suposto estar a chave de todo o segredo do nascimento do escritor... Mas nunca dei grande crédito a tal documento.
Fazia isto porque entendia (e ainda bem) que os meus textos tinham de percorrer o tabuleiro inteiro das dúvidas, preenchendo sempre os espaços vazios – como acontece naquele velho mas muito dinâmico puzzle informático que toda a gente conhece pelo nome de tetris
E foi no meio deste ambiente quase matemático que, na noite de 20 de Outubro de 2004, tomei conhecimento de algo extremamente curioso. Rapidamente, contentíssimo, escrevi ao meu interlocutor o seguinte:

– «Meu caro senhor Professor!
Imagine lá bem que comentava eu há dias com a minha Mãe esta nossa interessante troca de pontos de vista, e ela – de supetão – lembra-me que o meu Pai lhe contara um dia (há muito tempo, porque ele morreu faz 35 anos) que o namoro do seu bisavô Teixeira de Queiroz com Carolina Augusta nunca fora nada do gosto das respectivas famílias.
Ou pelo menos de uma delas.
Demonstrei-lhe de imediato o meu espanto e a total ignorância sobre o assunto – ela efectivamente nunca mo contara, mas achava que sim. 
Então perguntei-lhe quais as razões para tal oposição ao romance, que, a meu ver – tendo em conta a grande abertura de ideias dos Queiroz (a todos os níveis, como é sabido) –, só poderia vir do lado Pereira d’Eça
Sim, que era isso mesmo, e as razões para tal oposição eram de natureza política – confirmou a minha maravilhosa progenitora, cuja memória vampirizo com frequência crescente.
Pois claro! Os Queiroz eram próximos dos Progressistas!
O juiz desembargador Joaquim José de Queiroz – avô de Eça e Irmão Rosa Cruz (1) da Loja Maçónica dos Santos Mártires de Aveiro – tinha chefiado em 16 de Maio de 1828 o primeiro levantamento liberal que levaria ao real fim do absolutismo em Portugal.
Já os Pereira d’Eça – família da velha aristocracia rural com fortes laços na instituição castrense – engajavam-se provavelmente pelos Regeneradores, depois de anos a fio numa fé absolutista que roçara o apostólico. Obviamente, nunca veriam com bons olhos algo que apelidariam normalmente de promiscuidade.
Ou seja: eram, pelo menos formalmente, famílias inimigas!
Com estas migalhas do passado, recolhidas com óculo fosco nessa sempre fértil casa cheia de fantasmas – que é afinal o ambiente que rodeou o nascimento do nosso querido e grande Eça –, resolvi imitar o senhor Professor: pus-me a imaginar.
Um namoro às escondidas, breves encontros em locais não frequentados pela sociedade voyeuse de então, o Romantismo a polinizar em força toda a atmosfera deste nosso atrasado e convulsivo país...
Mas..., mas é o ambiente ideal para uma proximidade cada vez mais pujante de cumplicidades!
Vejamos: um jantar em lugar recatado, uma mãe viúva e doente, enganada facilmente com uma hipotética – mas muito habitual – estadia em casa das primas de Monção... 
A antecâmara da alcova...
Momentos idílicos, sem dúvida.
Depois é o desastre! 
Carolina entra inicialmente em pânico. Que, com o passar dos dias, se transformou em fúria – num quase ódio. Pelo namorado, claro, e por si própria com toda a certeza.
Mas também pelo ser que, todas as semanas, insistia em mostrar que crescia no seu ventre. 
O que diria a mãe quando soubesse?! E os primos de Monção! E toda a gente...
Quanta vergonha!
Sobre o que se seguiu nove meses depois, ambos estamos de acordo pelo menos num aspecto: Teixeira de Queiroz registou o mais depressa possível o jovem José Maria, não mencionando o nome da mãe para «evitar investigações futuras» – como muito bem diz o Senhor. 
Futuras, e já agora – se me faz o favor – também imediatas!, acrescento eu.
Porque qualquer investigação futura perderia toda a importância a partir do momento em que a jovem mãe solteira se decidisse a arcar com a responsabilidade dos seus actos. O que aconteceu, como se sabe, depois da mãe de Carolina a fazer jurar, no leito da morte, que tal desfecho iria mesmo ter lugar. 
Foi a contragosto mas aconteceu!
E quem vir a fotografia do dia de casamento de José Maria e Carolina Augusta não necessita de grande imaginação para perceber que, ao contrário duma situação normal, não se vivia ali um grande momento de paixão. 
Carolina tem cara de «frete», bem fechada – quase zangada. O vestido é de fantasia – nada formal, portanto –, e José Maria aparenta um ar um pouco perdido.
Encaixando todos estes brotos da minha imaginação com os documentos reais que atestam factos, bem como com os territórios que o futuro escritor ocupou na sua infância e juventude – as casas dos avós em Verdemilho e das tias Pereira d’Eça, no Porto, e o internato da Lapa (este bem perto da casa portuense dos seus pais e irmãos) –, chegar-se-á à única conclusão aceitável sobre tão atribulado desenrolar de factos: Eça de Queiroz, como criança e adolescente, teve um azar dos diabos!
É claro que podia ter ido parar à «roda», ou ter-se simplesmente ficado pelo tugúrio duma qualquer «tecedeira de anjos» – não é? Mas aquele rapaz teve azar, não haja dúvidas.
Depois, todos se foram acomodando à crua realidade – que incluía a distância exigida ao filho (e imposta ao marido) pela muito inteligente, irónica, dura, seca, fria e sempre elegante Carolina Augusta Pereira d’Eça de Queiroz. 
Que não gostava de crianças nem de «belhas» – mas que adorava festas.
Isto, meu caro senhor Professor, também é categórico!

Ou seja: somos dois categóricos.
E o senhor sem uma única prova, sequer circunstancial... Sem um nome, um testemunho e, acima de tudo, sem conseguir explicar que motivação teriam os Pereira d’Eça para inventar, colaborar e propagar uma «lenda» em que a principal protagonista pertencia à sua própria estirpe.
Seria gente obnóxia?, dada a extravagâncias?!...
Ambos sabemos perfeitamente que não. 
Carolina Augusta, a mãe de Eça
E eu começo a sentir alguma ambiguidade de sentimentos em relação ao que tenho estado a fazer.
Passo a explicar.
A questão do «julgamento público», sinceramente, não me aquece nem me arrefece. Não tenho de fazer prova – como o senhor bem sabe.
Por outro lado, já sinto umas certas cócegas nas meninges ao imaginá-lo pregado em breve na frágil cruz dos argumentos formais – sem mão amiga que lhe chegue a taça de fel à boca.
Não acredito que queira isso para si!
E assim dei comigo a desconfiar que o senhor Professor foi dando farta corda ao mesmo tempo que picava o macho – ou a mula, ou o burro, como se queira. Ora esse bicho sou eu!
Finalmente, começo também a achar que esta nossa muito agradável actividade já mostra um bom rascunho dos factos e dúvidas que envolvem o nascimento de Eça.
Boa ideia a sua. E, modéstia à parte, acho que também não me saí mal.
Assim sendo, vamos a aspectos mais técnicos.
Isto tem de ser uma empreitada a dois: com os mesmos direitos e deveres. E se quanto a direitos não há dúvidas, já quanto aos deveres cada um sabe dos seus.
Os meus são simples: 
1 – Escrever um texto, necessariamente breve, explicando porque me atrevi a discutir um assunto que conhecia bastante mal. Haverá ainda nesse texto um brevíssimo tratado sobre a evolução da minha relação abstracta (que agora já o é menos) com o senhor Professor. 
2 – Conhecer a sua ideia para título e metodologia de publicação, bem como ver a primeira prova impressa (tenho a vaidade de achar que a minha escrita é orgânica e que, como tal, não sobrevive a uma mera vírgula mal disposta). 
3 – Oferecer-me imediatamente para uma mais directa troca de impressões.
Já descrente numa possível retirada estratégica da sua parte, e prevendo uma caterva de trabalhos na sua próxima missiva

Com genuíno apreço
(AEQ)».
  1. A denominação maçónica (grau) de Joaquim José de Queiroz era realmente
    «Irmão Rosa Cruz» – e não «Rosa Branca», como por engano afirmo no original da
    carta a JHS




TROMBETAS DE RETIRADA


No entanto aquilo que eu achava já impossível acabaria por acontecer: uma retirada estratégica foi exactamente aquilo que me chegou pelo correio – cerca de uma semana depois de eu ter enviado o meu último entendimento sobre as condições em que Eça podia ter sido gerado. Que, na verdade, representa apenas uma boa possibilidade dentro do quadro conhecido e documentado.
Volto a afirmar que eu – tal como qualquer outra pessoa que se ponha a falar sobre este assunto – apenas posso fazer suposições. Ninguém lá esteve a não ser uma mãe, uma parteira e uma ajudante. 
As teorias mais ou menos romanescas que têm vindo a lume, mascaradas de teses e ensaios, baseiam-se num mero «diz-que-diz» próprio de mulheres de soalheiro – assunto de que mais adiante farei prova através dum ensaio jornalístico verdadeiramente lamentável, que já antes
abordei por alto.
Quanto a JHS, a sua carta começa com um ruborizante elogio à minha pessoa – o que sabe sempre bem! –, mas depressa volta a embalar surdamente na necessidade jurídica da omissão do nome maternal «para que não haja necessidade de futuras investigações»... 
Ora claro que isso até pode ser verdade! Só não inviabiliza de modo algum o facto de Carolina Augusta ser a verdadeira mãe de Eça.
Porque Teixeira de Queiroz procedeu de forma a que todas as situações futuras fossem acauteladas: se ela assumisse os factos, ambos casariam e dariam à criança «o meu ou o seu nome, como deve de ser» – diz o documento apenso ao assento de baptismo do seu filho; se tal não acontecesse, a jovem Carolina não seria exposta como mãe solteira (porque não haveria qualquer investigação futura!) e o jovem José Maria permaneceria Queiroz para sempre e filho natural de mãe incógnita – como até então fora.
Mas há aqui também um prisma de observação especialmente interessante que rebate em absoluto toda a tese de JHS, no que ela diz do hipotético interesse de Teixeira de Queiroz em defender o filho do ferrete infamante de adulterino. Não é apenas a demonstração de que se tivesse havido qualquer preocupação a esse respeito por parte do juiz, ela não teria resultado – já que ao Professor Saraiva não restam quaisquer dúvidas jurídicas sobre o que terá então acontecido. Também o facto de o juiz pretender pôr posteriormente ao filho «o meu ou o seu nome» deita por terra toda e qualquer estratégia nesse sentido – já que, ao dar-se futuramente à criança o nome materno, estar-se-ia a afirmar que, embora os pais fossem agora casados, ela seria para todo o sempre a consequência física duma relação extra-conjugal.
O que até era verdade: Eça foi de facto o resultado duma relação fora do casamento, mas não adulterina – porque só há adultério quando pelo menos um dos intervenientes é casado!
Resumindo: Eça de Queiroz nasceu simplesmente de uma relação pré-conjugal dos pais.
A versão do filho adulterino leva sempre à hipótese impossível dum juiz engatatão, mas também ignorante, néscio e bastante incapaz (o que se sabe não ser verdade), que casara depois em circunstâncias deveras esquisitas com uma rapariga um pouco lerda mas também muito generosa (atributos igualmente irreconhecíveis em Carolina Augusta).
Em que fantástico e saraivante mundo poderia viver semelhante parelha de bacocos?!...
Noutro que não este – como é óbvio.
Mas para o caso já pouco disto interessava dizer a JHS.
Porque, no fim da sua curta missiva de 28 de Outubro, o professor diz-me que «com o decorrer destes meses o tema perdeu o seu impacto na opinião», pelo que desiste da publicação do livro que tanto o entusiasmava no mês anterior...
É claro – para mim! – que um assunto envolvendo Eça em 1845 tem tanto interesse em 2004 como um ano depois ou muitos mais.
Mas, «é assunto que lego aos vindouros» – conclui JHS.
E aqui temos um desses vindouros! – pensei eu imediatamente, abrindo o Word para escrever a carta que daria luz verde ao que agora exponho.

Dizia no curto texto o seguinte:
– «Exmº Senhor
Devo começar por dizer que, depois da sua penúltima carta, já não esperava de todo que o Senhor se desinteressasse do repto que afinal me lançou – pese a breve ironia com que finalizei a minha anterior missiva. 
Espero, acima de tudo, que nada do que ali disse o possa ter ofendido. Porque nunca foi essa a minha intenção – se não pela minha educação, que realmente prezo, ao menos pelo facto do Senhor também nunca o ter feito comigo.
Muito pelo contrário.
Mas o senhor Professor decidiu e está decidido.
Eu também decidi. 
Aliás já o fizera aquando da resposta à sua primeira carta, onde me pede autorização para publicar as nossas contestações mútuas editadas no Expresso.
Mas como os trabalhos foram prosseguindo, deixei essa decisão em suspenso.
Agora, perante esta nova situação, reanimei a ideia de então e pretendo publicar o que já escrevi sobre o assunto, balizando os momentos vários que fui vivendo nesta minha tentativa de viajar até essa época já um pouco remota.
Como é óbvio, a sua teoria adquire neste contexto especial importância: correu na TV, no Expresso, no ‘DN’ e é, de longe, a que melhor fundamento apresentou até agora contra tudo aquilo que sempre foi assumido como certo pelos principais biógrafos do escritor.
Independentemente do grau de congruência que eu lhe possa atribuir, isso é uma verdade insofismável.
A outra verdade é que foi essa mesma teoria o principal combustível (chamemos-lhe) de que me servi para, na minha mente, tentar justificar a minha visão sobre momentos marcados por tão escassas e difusas referências.
Embora seja relativamente simples sintetizar a sua argumentação, já tornada pública, é óbvio que faria o maior gosto em utilizar integralmente os seus textos publicados no Expresso. Seria um capítulo ocupado apenas pelos nossos quatro textos, o que, obviamente, formaria a baliza mais visível do fio do meu raciocínio. 
E também do seu, por consequência.

Desejando-lhe sempre o melhor e esperando a sua anuência
(AEQ)».

A concordância de José Hermano Saraiva para com as minhas pretensões chegaria em meados de Novembro, sintetizada numa frase que ilustra bem a lealdade do professor para comigo: «Proceder de outra forma» – não permitir a publicação dos citados textos – «seria ser como o cão do padeiro, que não come nem deixa comer».
E foi assim que de repente me encontrei metido numa caterva de trabalhos – tal como previra um mês antes.
Mas, diga-se de passagem, com o prazer que julgo vir demonstrando nesta minha soma de linhas.

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