quinta-feira, 17 de novembro de 2011

CAPÍTULO X – O «Irmão Rosa Cruz»



A matéria documental presente neste capítulo – inteiramente dedicado ao avô paterno de Eça de Queiroz, o desembargador Joaquim José de Queiroz e «façanhoso rebelde» (segundo os seus opositores) no levantamento liberal de 1828 – resultou da exaustiva recolha (e imensa paciência!) do meu sobrinho José Couceiro da Costa.
Isto aconteceu por duas razões: a sua inesgotável curiosidade por tudo o que diz respeito a Aveiro e à sua história, ao que se somou a feliz coincidência de também ele ter ligações familiares (1) a um dos protagonistas do momento histórico envolvente – um dos grandes inimigos políticos do homem que já antes apelidei de meu «tetravô maçon».
Aqui é utilizada informação coligida na obra de Marques Gomes intitulada Aveiro – Berço da Liberdade (1899, Porto – Imprensa Portuguesa), em que são citados textos de Soriano (História da Guerra Civil) e de Silva Maia (Memórias históricas, políticas e philosóphicas da revolução do Porto em Maio de 1828Rio de Janeiro, de 1841). O grande tribuno e jornalista aveirense Homem Cristo, Rocha Martins, Pedro A. Dias e vários artigos jornalísticos são igualmente citados.
A datação de alguns destes textos é de crucial importância na explicação deste capítulo – que não pretende ser apenas um relato de factos interessantes mas de sentido aparentemente desgarrado no contexto do presente livro. E é especialmente importante porque prova que Eça soube sempre muito bem quem tinha sido e o que tinha feito o seu muito íntegro e austero avô Joaquim José – com quem privou de muito perto nos primeiros anos de vida.
Comecemos pelos factos que antecedem esse longínquo e turbulento dia 16 de Maio de 1828. 
A cidade de Aveiro congregava então, nos mais variados níveis sociais e profissionais, um vasto e coeso grupo liberal – talvez o maior de todo o país – onde se incluía o grosso dos militares e patentes do Batalhão de Caçadores 10. À cabeça deste grupo, o núcleo duro da Loja Maçónica dos Santos Mártires de Aveiro – cujos membros se espalhavam infiltrados em toda a vida cívica da cidade – mantinha bem acesa a chama da revolução que inexoravelmente se aproximava. 
Pelo seu lado, o governo do infante regente D. Miguel e seus representantes acentuavam progressivamente as mais variadas manobras de hostilidade aos liberais, que culminam a 13 de Março com a dissolução da Câmara de Deputados, de que o desembargador Joaquim José de Queiroz fazia parte.
Tal acto anti-constitucional funcionaria como detonador do movimento que em Aveiro foi congeminado a partir de uma pequena mas muito importante reunião secreta. Diz Soriano: 
«O principal promotor d’esta reunião foi o desembargador Joaquim José de Queiroz. Na sua quinta de Verdemilho e de combinação com outras mais pessoas, crêmos que filiadas n’uma loja maçónica, propôs ele colligar por meio della os commandantes e officiais de vários corpos do exército, que ainda nas províncias do norte permaneciam fieis aos seus deveres, tendo até então escapado às demissões do governo de Lisboa, ou por falta de tempo, ou porque ainda não tinham chegado a Portugal os rebeldes, refugiados em Hespanha. Da referida loja fez ele expedir emissários de confiança para diversas terras do reino (...)». 
Este texto, embora pouco objectivo quanto à existência física da loja maçónica, prova o envolvimento de Joaquim José como principal dirigente no primeiro levantamento liberal contra o absolutismo português, que teimava em contradizer as correntes que marcavam a agenda política do chamado mundo mais civilizado de então – com a Europa em destaque. 
Tudo isto é também detalhadamente confirmado por Pedro A. Dias: 
«(...) Foi aqui» (em Verdemilho) «que elle traçou, e dirigiu, todo o plano, tendo por agentes principais o fiscal dos tabacos n’aquella cidade Francisco Silverio de Carvalho Magalhães Serrão, Manuel Maria da Rocha Colmieiro, tenente-coronel de milícias, e Clemente de Moraes Sarmento, sargento do batalhão de caçadores 10, que acabava de chegar ao seu quartel de Aveiro». 
  1. Tetraneto

Consensos a 16 de Maio 

À crescente arrogância dos que lutavam pela restauração do absolutismo somavam-se pelo país novas adesões à causa liberal, onde as que representavam a força das armas tiveram, por razões óbvias, especial importância. E a 14 de Maio, Francisco Silverio recebe uma carta de Rocha Colmieiro em que este lhe dá conta que Francisco José Pereira, coronel do Regimento de Infantaria 6, no Porto, «estava finalmente decidido, e que rompia à menor ofensa que sofresse um dos seus soldados». 
Nessa mesma noite, Queiroz – reunido em casa de Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima com o Silverio, José Júlio de Carvalho (comandante de Caçadores 10) e Francisco António de Abreu e Lima – conseguiu o consenso para que a revolução tivesse início no dia 16 em Aveiro, mas apenas a 17 no Porto. Porque era necessário dar tempo para que o Batalhão de Caçadores 10 avançasse para o Porto – e tal só era possível após a revolta em Aveiro, onde este corpo militar tinha a sua sede, ter sido consumada. 
O juiz desembargador Joaquim José
 de Queiroz, avô de Eça
No entanto, a revolta espontânea dos soldados de Infantaria 6 no Porto, motivada pela exoneração política do seu comandante, «fez com que o regimento saísse para a rua pelas quatro horas da tarde de 16, dando vivas a D. Pedro IV, a D. Maria II e à Carta Constitucional, e se fosse postar no campo de Santo Ovídeo, onde se lhe foram reunir nessa mesma noite infantaria 18 e artilharia 4» – afirma Marques Gomes. 
Seja como for, a revolução já se iniciara de madrugada em Aveiro, após reunião de emergência em casa de Abreu e Lima: 
«(...) Tomadas ali as últimas resoluções, saíram todos, mandando logo este último» (José Júlio de Carvalho) «tocar a oficiais. Às 7 horas estava o batalhão formado, e nas ruas principiava a ouvir-se vivas à Carta Constitucional, a D. Pedro IV e à rainha D. Maria II». 
O governador militar António da Silva Pinto, o juiz de fora José de Sousa Ribeiro Pinto, o comandante de Veteranos Luiz Estêvão Couceiro da Costa (1) e o escrivão da Câmara António José das Neves são detidos em suas casas por militares de Caçadores 10 e levados sob custódia para os Paços do Concelho. 
«Para o quartel do Carmo e a fim de desarmar os Veteranos, foi uma força de caçadores comandada pelo capitão José de Vasconcelos Bandeira de Lemos, depois visconde de Leiria, que não consentiu que fosse desarmada a sentinela, um velho soldado da Guerra Peninsular, de apelido Coimbra, que, armado apenas de baioneta, fez frente a cinco ou seis caçadores, que debalde tentavam desarmá-lo». 
  1. Com o fim da intentona liberal, Luiz Estêvão Couceiro da Costa voltou por breve tempo à actividade castrense. No entanto, uma doença incurável torná-lo-ia inapto para todo o serviço militar, acabando por ser nomeado vogal do Conselho de Guerra Permanente – funções que exerceu no Quartel General do Porto. Segundo familiares deste militar, terá sido o próprio Joaquim José de Queiroz quem, na madrugada de 16 de Maio de 1828, se dirigiu à sua quinta de Arnelas, nos arredores de Aveiro, e lhe deu voz de prisão. Curiosamente, já no lado vencedor, Couceiro da Costa fez questão de pagar uma dívida que contraíra em tempos junto do «rebelde Queiroz» – como ficaria para sempre conhecido nesta família o avô de Eça

Sem espaço no «Belfast» 

No meio de todas estas grandezas de sinal variável, a Rainha é aclamada em auto lavrado (ditado por Queiroz), e a revolução irá prosseguir a sua bem curta existência junto ao poder. Porque a intentona liberal durou pouco mais de um mês, e o absolutismo só se extinguiria realmente em 1835, após a Convenção de Évora Monte e consequente expulsão de D. Miguel de território nacional. 
De facto, a 2 de Julho do mesmo ano, a Junta Revolucionária do Porto é dissolvida e os seus membros rapidamente dispersos pelas suas necessidades imediatas. No dia seguinte, todos fugiam para Inglaterra a bordo do navio «Belfast». 
Com uma única excepção: Joaquim José de Queiroz ficara em terra. 
Naturalmente, o 16 de Maio produzira uma multidão de derrotados notoriamente descontente com a ameaça que representavam as forças de D. Miguel, as vinganças, os roubos e enxovalhos dos mais variados tipos que em breve sofreriam se permanecessem em Portugal. Rocha Martins sintetiza nestas palavras a repressão que acabaria por surgir: 
«Em todos os partidos há gente péssima ou bondosa; a exaltação política e religiosa produz sempre horrores. O medo sofrido por uns contendentes transformara-se no castigo fero a infligir aos que, na véspera, eram os vencedores». 
E se a sorte de existir no Porto um barco pronto a zarpar – logo no dia seguinte à derrota dos liberais – permitiu que os membros da Junta Revolucionária do Porto embarcassem para o país de exílio, o mesmo já não aconteceu com as cerca de 12 mil pessoas que, às cinco da manhã de dia 7 do mesmo mês, reunidas no campo de Santo Ovídeo (nas imediações de Cedofeita), iniciavam a partir do Porto uma difícil e tumultuosa fuga em direcção à Galiza
À frente de toda esta gente seguia um brigadeiro, de nome Pizarro, e o desembargador Queiroz – «o único membro dessa junta que fez causa com estes infelizes, ou porque os seus colegas lhe não permitiram passagem no “Belfast”, ou porque ele preferisse seguir antes as tropas e o povo, esposando seus trabalhos, do que acompanhar desertores, que levavam, é verdade, todas as comodidades, mas não menos vergonha» – escreve Silva Maia em 1841. 
O desembargador Queiroz já não é um homem novo (nasceu em 1774), mas acompanha o povo e as tropas vencidas na sua penosa marcha até à Galiza. Segundo Marques Gomes, dali embarcará para Inglaterra, rumando depois a França e finalmente a Ostende, na Bélgica – onde se baseia. 

Daqui enviará, em Agosto de 1830, o seu célebre protesto ao marquês de Santo Amaro – diplomata brasileiro que se dirigia a Portugal em representação de D. Pedro (já imperador do Brasil) para confirmar no trono o regente D. Miguel. O emissário brasileiro estendia tal reconhecimento a um provável casamento da infanta D. Maria (futura rainha D. Maria II) com o próprio tio, que em breve seria coroado rei – aliança que Queiroz deplora. 

Gratidão no exílio 

Como seria de prever, o novo rei D. Miguel I entende-se bem com todo o poder que o reclamado absolutismo lhe confere. 
Há enforcamentos na Praça Nova do Porto (hoje Avenida dos Aliados) e, de acordo com a sentença da alçada de 25 de Novembro de 1829, a acusação considera o rebelde e revolucionário Joaquim José de Queiroz em termos particularmente gravosos: 
«Do infame, perverso e façanhoso réu Joaquim José de Queiroz mostra-se o haver sido, não só o mais atrevido e ousado conspirador, cabeça e principal auctor das tramas e machinações que urdiram e prepararam o horroroso attentado de 16 de maio de 1828 nas duas cidades de Aveiro e Porto, mas também incansavel e poderoso agente do seu desenvolvimento e acerrimo mantenedor da sua destruidora persistência e deploravel duração». 
É pois evidente que se o desembargador Queiroz não tivesse escapado em tempo útil dificilmente se teria livrado do garrote. Assim, a sentença que sobre ele impendeu materializou-se apenas na ‘pessoa’ da sua efígie. Ou seja: na falta de réu verdadeiro, os miguelistas enforcaram um boneco – tendo o mesmo acontecido com vários outros condenados igualmente ausentes. 
Mas também os bens dos revolucionários são confiscados, e a repressão sobre os opositores resvala rapidamente para a mera vingança cruel: Teodora Joaquina de Queiroz (1), mulher do «façanhoso», é presa e afastada dos filhos. 
Sobre estes factos, Homem Cristo escreve em 1940, no jornal Povo de Aveiro, um apontamento concludente sobre tão complicado momento: 
«Os filhos ficaram ao cuidado de três servos, que o amo trouxera do Brasil, e que não foram ingratos. Aquela família tornara-se paupérrima, mas, sobretudo um criado italiano de nome Martinho, acudira-lhe». 
A casa de Verdemilho onde Eça passou a infância
A até então abastada família Queiroz via-se pela primeira vez completamente esbulhada e desmembrada, e quem chama a si a responsabilidade de tomar conta das várias crianças do casal são três escravos (ainda o eram, pelo menos formalmente) «que não foram ingratos», e um criado que – tudo indica – trabalhava para lhes assegurar sustento. 
É no mínimo uma situação de notável dedicação, para mim só explicável por via de uma atmosfera generalizada de grande respeito mútuo entre empregados e patrões. 
Entretanto, o exilado chefe desta família destroçada prosseguia a sua vida de revolucionário na Bélgica, publicando textos no Brasil e em Portugal, mas sempre afastado das tricas de refugiados que conspiravam de forma barulhenta e inconsequente, procurando no duque de Saldanha o bode expiatório para toda a derrota liberal. 
Vivendo os muitos dias de tal provação, Queiroz nunca abandonou no entanto o sonho de poder regressar à pátria. O que acabaria por acontecer nos Açores, onde, aos 56 anos, se voluntariza como simples soldado no Batalhão Académico, embarcando depois na Terceira com as forças comandadas por D. Pedro IV de Portugal e imperador do Brasil, rumo à Praia do Mindelo e ao início do verdadeiro fim do absolutismo em Portugal. 
  1. Este é o nome de casada da avó paterna de Eça, embora alguns autores a citem Almeida – uma impossibilidade, dado ser este o nome materno do marido

Espólio de maçon 

Sobre a loja maçónica dos Santos Mártires de Aveiro existe alguma descrição de pormenor: seguia os ritos da maçonaria francesa (a mais ortodoxa), e conhecem-se mesmo os nomes civis e secretos de alguns dos seus principais frequentadores. 
Assim, Luiz Gomes de Carvalho, tenente-coronel de Engenharia responsável pelas obras da barra, era o «Cavaleiro da Vingança»; João dos Santos Resende era o «Irmão Andador»; o juiz de fora Caetano Xavier Pereira Brandão era o «Interrogador»; o provedor da comarca Carlos Cardoso era o «Cavaleiro do Punhal» (responsável pela segurança da loja); o desembargador e ex-deputado Queiroz era o «Irmão Rosa Cruz» (do 7º e mais importante grau segundo o rito da maçonaria francesa); o tenente-coronel António de Azevedo e Cunha era o «Irmão Venerável» (o chefe da loja); e muitos outros nomes são certos neste grupo, tais como Luiz Cipriano de Magalhães, pai de José Estêvão
Mas realmente bem pouco foi encontrado nas instalações que serviram de sede a esta sociedade secreta – obviamente esvaziada ao máximo antes das acções de busca. 
Por outro lado, destaca-se já o espólio pessoal que foi possível apreender a Joaquim José de Queiroz. 
Acomodado numa arca que foi interceptada por agentes miguelistas, este espólio incluía bens materiais consideráveis – mais de seis contos de reis em títulos de dívida nominais e pratas diversas –, bem como alguns livros com títulos mais ou menos misteriosos. Deste conjunto, publicitado no Correio do Porto em Junho de 1829, destaco dois títulos: 
«(...) Um Caderno Regulador Maçónico de folhas 1 a 39, inteiro, em 8ª, e outro com o título seguinte: A.G. do G. do V constituição da Ordem dos LLL:.M.M.M. Portugueses, com 127 capítulos, manuscrito em 4º grande...».(1)
Textos vários, de natureza revolucionária, papéis pessoais e um hábito de Cristo compunham o total confiscado, que nunca foi devolvido – mesmo após o fim do absolutismo e das vãs promessas de devolução de bens confiscados. 
Quanto a eventuais compensações, o desembargador todas recusou – preferindo antes o ponto de honra de se manter como soldado no Batalhão Académico
Tendo desempenhado funções no Tribunal de Guerra e de Justiça e sido posteriormente nomeado por decreto presidente do Tribunal de Segunda Instância do Porto, Queiroz é confrontado em 1833 com a necessidade de abandonar o seu posto de soldado no Batalhão Académico. 
Mostro agora um excerto da sua resposta ao ofício em que o seu comandante lhe solicitava o abandono do posto militar para poder continuar a exercer os seus deveres civis: 
Mausoléu do avô de Eça em Verdemilho
«Nem este, nem aquelles empregos foram por mim pedidos, nem mesmo lembrados, mas uma escolha de confiança com que S. M. F. quis honrar-me; assim não está em meu arbitrio o deixar de servir aquelle que actualmente exerço, e me é em consequência impossivel a alternativa, que de mim se exige. (...) Todavia, se a ordem que V. S.ª me communica, emana de S. M. F., o que d’ella não collijo, cumpre obedecer, e então posto na collisão de dois deveres tão sagrados, o servir um emprego para que S. M. F. Me escolheu, mas que com as aparencias de vantajoso me põem a coberto do risco pessoal, ou ter exercicio no Corpo Academico, a que jamais me recusei, onde a minha vida sim corre todo o risco, mas um risco glorioso, eu prefiro este exercicio, e S. M. F. me Fará a Graça de desonerar-me d’aquelle, já que um e outro se julgam incompativeis». 
É este o retrato sumário do avô paterno de Eça de Queiroz. 
É-me impossível acreditar que a sua dimensão, revolucionária e humana – onde o episódio do «Belfast» assume proporções épicas –, não tenha sido do conhecimento do escritor. Como me parece igualmente improvável que tais factos não o tenham influenciado de forma perene. 
O acto diplomático de Eça em Cuba parece confirmar essa influência tutelar. Tal como a criação do personagem Afonso da Maia se assemelha muito a uma homenagem especial de um neto grato ao seu bem admirável avô. 
E foi este o homem que Agustina Bessa-Luís, na sua voragem simplista, classificou algures de «patético». 
  1. Contando com uma ou outra possível gralha tipográfica, esta sigla significa algo próximo de «à Glória do Grande Arquitecto do Universo – constituição da ordem dos Irmãos Maçónicos Portugueses»

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