domingo, 27 de novembro de 2011

JOGOS NA TV*


* (texto escrito em 2000 e publicado em Contos Acrónicos)


Há dias revi-me num velho ambiente que a TV mostrava como se houvesse ali grande novidade. Repetia-se, por via da fatalidade impiedosa de assegurar share noticioso, arrancando vagos e impotentes encolheres de ombros ao pedacinho de mercado verdadeiramente interessado no assunto em causa.
Tratava-se da crónica guerra civil angolana.
Da sua crónica.
Redundava em tempo e substância. Só não distinguia os motivos. E, das duas uma: ou sabia e não os queria mostrar, ou não sabia e é tudo! Ou nada.
Coloquei no leitor de cd’s um dos temas de The Dark Side of the Moon, dos Pink Floyd, e baixei o som da televisão.

Em 1974 esta música estava integrada em muitos de nós, milicianos do previsível fim de uma guerra. E nós estávamos nela – na música -, por questões de génese cultural ou de pura sobrevivência estética e filosófica. Em havendo tais preocupações, a guerra tem pouco espaço de manobra.
Era o que então pensávamos.
Com aquele som, a imagem voltava ao seu tempo.
Time fez-me reencontrar a intimidade que existia no aquartelamento, nos mamoeiros espetados para o ar com a sua copa de folhas no topo do tronco e frutos testiculares, no pó do ar com os seus torvelinhos na pista de macadame, nas avionetas do correio e nos felizardos que nelas iam e vinham de Luanda.
E a missão por perceber, a diversão instalada dentro da probabilidade incerta dos jogos de sorte e de azar, como qualquer sistema binário que se preze.
E, acima de tudo, o  monstruoso e maravilhosamente irresponsável amanhã que se lixe.
A contradição era visível, mas nós ainda só éramos cegos que nem toupeiras. A missão desaparecera com os últimos mortos em combate. Achávamos – o comando promovia a ideia – que ajudar os da terra era a alternativa óptima a uma guerra imbecil que só poderia ser compreendida, e como tal vencida, num dia-a-dia muito espalhado num tempo qualquer que entretanto já não era o nosso.
Mas o tempo correria, e toda essa espécie de bom senso foi abandonado pelas superiores estratégias nacionais, preocupadas apenas com o pendor das geopolíticas dominantes que deveriam vencer e comer o pedaço.
Era, diziam as estratégias, a opção correcta, a atitude aconselhável, o rumo a seguir!
O limbo só nos mostrava o desconhecido.
Restava ouvir com atenção displicente algumas «fórmulas mágicas suavemente sussurradas» - se é que ainda sei traduzir alguma coisa.
Éramos locatários do exército, mineiros de um futuro tacteante, à carga do Estado e pagos para fazer não se sabia bem ao certo o quê.
Compreendíamos que a nossa guerra acabara – apenas isso. E sobrevivíamos, até ver, no mais encantador dos oblívios técnicos: ninguém nos ligava peva, soldados dessa história instantânea.
Há muito que nos despedíramos do demorado e incompreensível esquema que nos convidara, a todos e em tempos, a uma observação próxima e criteriosa da guerra que até então se fazia. Mas já não íamos para levar ou dar, como supõe o certeiro provérbio.
Íamos simplesmente para ver o monstro de perto.
E vimo-lo.
Eu, apenas por mim, possa jurar que fui tentar ver como acabava uma guerra. Objectivo, diga-se de passagem, que não consegui atingir. As NEP’s (Normas de Execução Permanente) não falam do assunto, logo, o fim da guerra, não estando previsto, não existe. E assim as NEP’s são proféticas e de certa forma exactas na sua premonição.
O que é agradável de saber... Enfim, há certezas!
A emergente falta de actividade castrense atirara-nos para um langor fácil. Fogo só em porcos bravos, numas jibóias lentas e na carreira de tiro – por vezes improvisada em campo de futebol ou de vólei. Para espantar o tédio. E acontecia isto num sítio que eu encarara, no primeiro dia, como um tremendo «buraco», explicado à maçaricada num grande painel pintado nas cores vivas da tinta plástica, que anunciava ao ‘transeunte’ a chegada à «Estância de Férias do Zala».
O painel era sucinto mas provou-se depois que já fora ultrapassado pelo tempo. Anunciava piscina, o golfe, ténis e um tal «‘stand’ de tiro ao preto». Estes temas nunca foram comprovados na minha vigência. A piscina existia, mas estava vazia e abandonada desde há muito.
Morrera gente por ali, dizia-se.
Havia coisas bem mais interessantes para fazer.
Passeios inconscientes pelo mato fora, banhos nas pequenas cascatas do Lué-Lué, o “boi-cola” em quantidades apocalípticas, e uma quase total ignorância do comando. Naquela ilha doida do meio do mato. E passear a três com dois cães e uma faca era um desporto que se tornou no melhor da festa.
Só para alguns, convenhamos.
Os que o faziam desconfiavam que não corriam qualquer perigo efectivo, e havia sempre uma grande tendência para que os mesmos se apresentassem como voluntários no corpo de protecção pontual aos MVL, que iam e vinham da ‘Lua’. Via inevitável, o Nambu, que permitia compras de vária ordem: erva bruxa, sapatilhas, t-shirts brancas, toalhas, vinho de palma. E uma queca mais escondida...
Eu, João Mário, Zé Vicente (e os cães!)
Em meados de 74 havia uma paz simpática. Zala era um paraíso cafrializado em tainas, cinema velho e passeatas mascaradas de missões. Havia uma colina a oeste – o morro da UPA, para onde estava virado o Pelotão de Morteiros -, mirada com respeito por via de histórias contadas e aumentadas.
Mitos razoáveis do mister da guerra, com muita fantasia e realidade, numa mistura equilibrada, aceitável para os neófitos.
Um puto preto, que os soldados mimavam e cuidavam como a um filho, vestia um pequeno camuflado onde por vezes lhe colocavam umas divisas de capitão.
Era o ‘Bambino’!...
Dizia-se que a pequena cicatriz que apresentava no queixo fora feita de raspão pela bala que lhe matara a mãe – no meio de uma fuga madrugadora, com o miúdo às costas, à frente de uma operação de Comandos.
Havia também um pisteiro sem o braço esquerdo, com fama de perigoso épico, que deambulava altivo por ali sob o nome bíblico de Zacarias. Dizem-me que foi ele que elaborou a operação em que ‘Bambino’ é retirado à sua existência anterior. E mais umas centenas de negros e negras agremiados à volta de um não menos bíblico Jonas. E um sem número de actividades heteróclitas a que um soldado, fora da guerra consigo e com o resto do mundo, se podia dedicar sem medo de represálias ou de outros desastres periféricos.
A perfeição absoluta, dentro da maior imperfeição genérica.
Era como um sonho permanente, improvável, cheiroso de terra, luminoso, com as nuvens a pousar numa parte específica do céu, como se ali houvesse um enorme separador invisível. Um céu primevo, raramente alterado por feridas no jet stream, que mesmo sendo poucas desapareciam num ápice. No ar, só quase havia pássaros e borboletas, e uma desportiva DO-27 ou um esporádico e não menos desportivo Alouette. Por duas vezes vi uns Pumas a levar Comandos.
E, diariamente, os correios da Satal e da CTA, que aterravam no meio de grande euforia a branco-e-preto – ou a preto-e-branco, como se queira.
Mas havia euforia.
Os tempos destoavam da metáfora superficial que justifica o inadmissível crime que a guerra será sempre para os inocentes nesse negócio. Mesmo quando se lhes apresentam razões que sobram, explicadas pela história que devem ouvir - por favor, com desprezo ou muita atenção. A compreensão não é para aqui chamada. Todas as guerras provam isso. Especialmente as modernas, porque das antigas já pouco se sabe.
O certo é que o povo, seja ele qual for, não ganha.
E isso é absoluto.
Ainda assim havia a necessidade marginal de resistir erecto e vagamente operacional perante o comando. Uma atitude grata nestes meios fechados, e, à época, especialmente apreciada. Quando surgia.
Um soldado será sempre um soldado, mesmo quando não tem o menor jeito para isso. Mesmo quando não vale nada como soldado – em absoluto o meu caso. Mesmo quando não percebe as razões da guerra, ou simplesmente as entende como matéria espúria ou decadente.
O que continuava a ser o caso.
Foi nesses primeiros dias de África que conheci o Hermínio. Tanto quanto sei, é hoje um respeitado operador de transportes internacionais (camionista TIR).
Conheci, a caminho do Zala, aquele que viria a ser o meu maior amigo, conselheiro e aconselhado – condições ‘sine qua non’ da amizade profunda e confiante (prima co-irmã do amor). E conheci também o esplendor magnífico da sua desgraça anterior.
Aos 18 anos e sem formação específica ia dar em «caçador especial» - talvez na Guiné, que era o mais temido dos destinos ultramarinos. Chicha para canhão, com treino específico na guerra ao vivo.
Vai daí resolveu fugir à tropa. Ele e o futuro cunhado. Para Espanha – que ao tempo era quase outro continente. Tinham dinheiro para uma semana e comida para dois dias.
Duarte e Hermínio na mãe-de-água
Pouco tempo para ainda menos meios.
A fome apresentou-se-lhes como um semáforo. E, como um bilhete de visita, chegou também um chasseur da Legião Estrangeira Espanhola que lhes pagou uma bela refeição (a primeira em dois dias de côdeas). E lhes garantiu, sob juramento, sucesso em todo os aspectos no Sahara Ocidental, ocupado pela Espanha de conluio com um Marrocos deitado no divan, que negociava langoroso junto ao narguilé, ao chá de menta e às massagens de função duvidosa.
Hermínio e o futuro parente aceitaram o desafio. «Sempre parecia melhor do que morrer na Guiné ou em Moêda!», explicou-me. E, durante ano e meio, os dois amigos pagaram caro a escolha.
No meio da puta-que-os-pariu – que afinal é a nossa querida Terra -, controlados por uns tarados do poder e a olhar para as dunas que mudavam subtilmente como a mais suave curva da mais volúvel das mulheres (e não me venham com a acusação de machista porque o deserto é feminil! perigoso e feminil, o que está correcto!), Hermínio e futuro cunhado desesperavam.
Mulheres de areia e homens cabrões!? Aquilo era tão bom que os dois amigos fugiram através do deserto para junto do mar.
Aí conseguiram transporte para Tenerife, onde se apresentaram ao consulado português. Em três dias estavam de volta à Pátria amada e duas semanas depois em Angola, como recrutas de uma qualquer companhia de Comandos em formação. Como voluntários! Já tinham dois anos de tropa macaca. Mas iam fazer muitos mais.
Hermínio recusou efectuar a última prova do seu curso ‘Comando’: uma acção de combate real. Tornara-se por isso num ‘Comando falhado’ – uma denominação cheia de objectividade redutora. Acabou por fazer sete anos de tropa e foi sempre um grande amigo.
Mas a explicação para que um esquisso de soldado apesar de tudo se mantenha erecto e operacional resulta do facto de, no perigo, tanto o alegado cobarde como o virtual herói serem obrigados a ter sempre como referência o reduto primordial: a casa onde estão os amigos do momento, que os defenderão com as suas armas.
O que também só é bom quando o inimigo não é o próprio, transmutado por alquimias desconhecidas de uns, conhecidas por outros... Aí, só Deus poderá valer, mesmo quando entendemos não fazer parte do incomensurável e divinal rebanho. Porque:

«If the band starts playing in different tunes
I’l see you on the dark side of the Moon»...              

Muito depois do jantar, muito depois do xadrez, da erva bruxa e de um Vivaldi que ajudava a adormecer, desata um tiroteio. Um sargento-ajudante, boçal em estilo e maneiras, borrado de medo na sua primeira experiência no mato, à espera de chegar à Metrópole como alferes da Guarda Fiscal – que a última comissão de serviço no Ultramar em zona operacional lhe garantiria -, dispara o carregador inteiro da sua G-3 no telhado de zinco ondulado, às quatro da manhã, a partir do interior do seu quarto. Porque um pangolim se assemelhou por momentos àquilo que o ajudante pensou poder ser o inimigo. O raspar das escamas grossas do bicho nas chapas do telhado tornara-se suspeito à luminária.
Quase toda a gente entrou em estado de choque. Um telhado varado, um ajudante a fazer figura de parvo, um batalhão inteiro em alvoroço, e o cadáver quase intacto de um mestre comedor de formigas encerrado nas suas placas ósseas – que tanto quanto percebi não morreu dos tiros mas sim à paulada. Era tudo.
Foi uma das nossas poucas vítimas, ao lado de umas quantas cabras do mato, pacaças e porcos bravos. As cercanias minadas ajudavam ao “menu” do batalhão e a verdadeiras infelicidades - só imprevisíveis para quem não conhecia o mapa de defesa de Zala ou o pretendia furar à força.
Tínhamos umas poucas semanas de mato: éramos ‘maçaricos’ em qualquer guerra – passada, presente ou futura. O mundo circundante, tal como era conhecido até ao momento, não passava de uma vaga ameaça escondida algures, desprezada pelos mais afoitos. Os jogos, o circulozinho de fogo com algodão e álcool usado no espectáculo único do suicídio do escorpião..., a missa - que alguns assistiam simplesmente para agradar ao padre, que até era um gajo porreiro -, tudo isso era já uma farsa gasta.
Era o descambar das burocracias militares, visível para os milicianos, que diplomaticamente condescendiam enquanto tentavam arranjar ocupação. Àquela hora já muito poucos pensavam em fugir – fosse o que fosse que acontecesse. A revolução prosseguia, e assim teria de ser. E ninguém fugiu, apesar das facilidades políticas.
Uns quantos perderam a paciência – o que também se compreende.
Desconfianças mútuas nas chefias, julgamentos virtuais intermédios - e por média inconsequentes -, acasalamentos intelectuais de circunstância – ou não. Sinais vários que mostravam uma Angola em instantâneo, que naquele momento corria em câmara rápida. Um tempo congelado mas pouco durável, e muito menos para nós – como depois se viu.
Assim chegou a outra guerra.
A outra!, e nós ainda não conhecêramos nenhuma.
Éramos simples espectadores do fenómeno que rastejava na sua evolução, camuflado nas raças e nas etnias, no barro da terra e no verde impenetrável da mata. Cores que servem de fundo a uma luxúria que esconde venenos e panaceias com códigos tão antigos e imbricados que os sentidos considerados normais não detectam.
Pequenos abusos e picardias irrisórias anunciavam o fim do respeito pela normalidade até então tida por histórica. A urbanidade terminara de vez e mostrava porque nunca tivera solidez evidente naquelas coordenadas.
O colono tinha de ir embora! Angola era dos angolanos e «A vitória é certa!».
Um dia, já em Malange, verificámos no mapa da sala de comando o avançar inexorável das tropas da FNLA e do MPLA – que afunilavam os seus movimentos na nossa direcção. Era uma das últimas batalhas de cidade do pós-25 de Abril – uma das que acabariam por dar o domínio político e militar definitivo ao país prematuro dos fiéis a Agostinho Neto.
N’Dalatando tinha caído às mãos do MPLA uns dias antes. O comandante local do destacamento português – o capitão miliciano Afonso Pereira –, numa mensagem cripto enviada à chefia militar de Malange, dissertava já só em linguagem tristemente poética sobre a «paisagem lunar» que o breve conflito lhe deixara nas ruas do centro urbano e arredores da sua ex-Vila Salazar.
Aguardávamos, apodrecidos de incapacidade, que a gadanha de Marte se aproximasse e mostrasse os seus portentos.
Ao fim desse dia, eu, Manuel Lamas – manual deste lamaçal e futuro bibliotecário de horizontes mitigados -, comandava uma patrulha que devia fiscalizar o recolher obrigatório a partir da meia-noite. Putas e artistas incluídos.
Demos boleia a um radialista local, que naturalmente pretendia chegar a casa sem problemas. Como o Exército Português já não representava o inimigo, estar com ele garantia um guarda-chuva de impermeabilidade razoável. No dia anterior eu emprestara-lhe uma cassete que a minha namorada de então me enviara de Portugal. Era uma peça estranha, de um grupo dinamarquês - os Savage Rose. Tinha sido escrita para acompanhar o voo naturalmente paradoxal de um bailado projectado por Ionesco chamado ‘Jeu de Massacre’. O ‘Triunfo da Morte’ vivia de um leitmotiv obsessivo, permanentemente visitado através de máscaras melódicas com cambiantes curtos mas precisos. Uma destas passagens podia perfeitamente ilustrar sonoramente o ‘Grito’ de Munch. Para todos os efeitos era um som muito interessante. Acho, cada vez mais, que assim permanece.
O meu amigo radialista decidira passar a cassete no seu éter alugado, na sessão dessa noite, no meio de África, para alguns ouvintes, sem qualquer outro objectivo que não o de proporcionar algo de verdadeiramente novo aos seus cúmplices de tímpano.
Anisette fecha o texto da minha cassete com uma estrofe impiedosa:

Dear Mr. Harvester
What’s in your bag?
Solitude and death...

Parecia o destino a trabalhar.
No dia seguinte a guerra instalou-se em Malange.
Uma metralhadora pesada da FNLA foi montada no topo do hotel Diamante, massacrando o dia com o estrondo hiper-tenso dos seus vinte milímetros de calibre. A noite vislumbrava-se num zimbório de balas tracejantes. RPG’s e morteiros variados mostravam o injusto e eficaz artifício do seu poder.
A mim mandaram-me montar segurança aos paióis do quartel!, como se isso fosse aceitável, debaixo de bombardeamentos contínuos e a par de uma total inexperiência pessoal.
Era o que havia.
Cheio de um grande medo, tentei que os outros não fossem tomados por ele – porque isso não dava jeito nenhum!
De manhã, já eu dormia, e o quartel encheu-se de refugiados civis. Famílias inteiras, carros, haveres dispersos, tudo se amontoou como tralha num espaço em que a capacidade logística se dividiu por vinte, em três dias.
A simples sobrevivência tem aspectos didácticos ao nível do espírito de grupo. Mesmo quando o tal grupo não passa de um amontoado de pessoas assustadas, que à vista de uma suposta protecção imediata procura logo o máximo de comodidade disponível. Sem vislumbrar que pode estar a incomodar terceiros, e que esses terceiros não passam de seres humanos falíveis e tão desprovidos de meios como elas próprias.
E tudo isto é muito natural porque a multidão é naturalmente cruel. E surda, e cega, quando não consegue ser ainda pior.
Ou o contrário. O que também acontece.
Mas os políticos é que sabem tudo sobre este negócio. Ou nada – o que ainda é mais comovente.
O assédio chegou para durar e Malange caiu indefesa.
Há um herói verdadeiro nesta história. Anónimo. Era um oficial do Quadro Permanente. Tentou várias vezes encontrar o possível dentro do impossível. Corria a noite atroada de fogo no seu ‘jeep’, sozinho, tentando juntar vontades e consensos. Recusou por vezes condutor ou escolta. Não conseguiu consensos e menos ainda vontades a seu favor. Evitou alguns desastres maiores.
O que não é mau para um homem só.
Uns dias depois encontrei uma mulher em pleno trabalho de parto debaixo de um dos grandes eucaliptos do aquartelamento. Levei-a para a minha cama, não havia outra. Depois, levei-lhe uma laranja para o amanhecer do filho e bebi o resto do dia a minha ração de vodka sem laranja. Por um momento, muito curto, senti-me, também eu, um pequeno herói. Ainda me lembro do gesto com um prazer inexplicável. Orgulho-me desse resquício de grandeza. Tenho filhos.
Um mês depois, o pouco que ainda restava da população civil de Malange – o pouco que ainda não fugira ou morrera – abandonou a cidade com o Exército Português, com o fim da sua presença. 
Chorava calada os seus mortos recentes e a sua vida reencontrada numa desgraça que compreendia muito mal. E numa saudade que já não podia sarar de modo algum.
Soldados de ocasião e sem missão real – como nós, os milicianos, mas também só nesse aspecto -, alguns poderosos deste e doutros momentos têm por desporto favorito uma irresponsabilidade partilhada em circuito fechado: quando não sabem mais o que fazer praticam um tipo de poker onde ganha mais aquele que maior número de sonhos consegue destruir e transformar em pesadelos.
Em ganhando, tudo se justifica.
Há vinte e cinco anos foi assim em Malange.

Nada mudou. 
O massacre absurdo prevalece na TV tautológica. 
Aqui e ali, regional e generalizado. 
Redundante e por toda a parte.

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