terça-feira, 15 de novembro de 2011

CAPÍTULO VIII – Retratos dispersos do jovem José Maria








Tendo em conta que este foi um dos últimos textos que escrevi para o presente trabalho a respeito de Eça de Queiroz – mais não seja pelo facto de entender, para já, não me sentir habilitado a ir mais longe –, bem depressa reparei que tinha deixado o mais complicado para o fim.
Nenhum outro capítulo – e poucos surgiram pela ordem que agora ocupam – demorou tanto a ter o seu início fixado.
Atribuo as culpas de tão complicado ‘parto’ a dois aspectos que estão seguramente interligados – embora algures, em parte incerta. 
Em primeiro lugar houve da minha parte um certo pudor, pouco explicável, que me incomodava por me dizer nas ventas que ia pôr-me a falar sobre algo de que pouco sabia – facto que já antes acontecera, mas sem produzir tais complexos. Depois, para complicar um pouco mais o meu esboço, entreviam-se na mesma página em branco, como fantasmas de anteriores tentativas, os esquissos e os gatafunhos mais ou menos em desordem que outros um dia fizeram a propósito do mesmo assunto.
Sobrepostos uns por cima dos outros, estes traços, finos ou grossos, mostravam apenas um escuro novelo de linhas deformantes, como se muitos lápis e canetas por ali tivessem andado, sofregamente, em busca de uma imagem real – ou, pelo menos, da mais credível das imagens.
O que, afinal, era também o meu objectivo.
Decidi-me então por uma experiência de auto-indução: dotado de quase nulos dotes de retratista, propus-me executar em grafite e carvão um desenho do escritor a partir exclusivamente do modelo que possuía na memória. 
Não pretendendo uma imagem simétrica do seu rosto – nenhum rosto é simétrico –, rapidamente me dei conta da notória discrepância de tipos existente entre as duas metades que o compunham no meu desenho. 
Mais adiante era a boca – muito pequena –, depois o nariz estava torto (e não adunco, como deveria ser...). E a seguir, ainda, a cara – que estava comprida e a cabeça pouco oblonga, quando deveria ser ao contrário! 
Finalmente batido, decidi-me a observar uma boa fotografia do escritor para assim estabelecer alguns termos de comparação entre o real e o imaginado.
É claro que as diferenças com o original eram muitas: dum lado parecia mais novo; por outro, o seu olhar irónico entrava em conflito com um bigode tristonho; noutro ainda, chegava mesmo a mostrar uma irreprimível inocência. 
Ali, no meu desenho, misturavam-se épocas, momentos, sentimentos e estados de espírito, dúvidas e certezas – e até mesmo outras pessoas correlacionadas (como os pais e a filha, por exemplo). 
Mas já que tinha ido até ali, decidi terminar o retrato – e a experiência sempre serviu para qualquer coisa. Não ficou famoso – mas dá uma ideia. 
Seja como for, esta complicada aventura pictórica teve o condão de me autorizar a tentar uns quantos retratos mentais (e também físicos) do meu bisavô. 
Não sem muita ajuda – diga-se de passagem. E com a certeza de que, à semelhança do que acontecera com o meu desenho, mais não conseguiria do que umas quantas semelhanças e aproximações.

Um rapazinho pouco falado 

De novo me encontrei face à carência de informações familiares, que numa situação normal não deixariam de existir, vindas mesmo de muitos quadrantes.
O jovem José Maria
Mas, como já se sabe, a situação não fora realmente normal. Especialmente numa época em que a bastardia era – ao contrário do que pensa José Hermano Saraiva – uma situação muitíssimo constrangedora (embora relativamente vulgar). No caso de Eça, tal constrangimento não pesava apenas sobre o próprio – como facilmente se percebe através dos factos conhecidos. 
Sabe-se que Eça viveu parte da infância com os avós paternos, em Verdemilho – o que suscitou sem dúvida a sua célebre auto-caracterização de «autêntico peixe da Ria». E que as residências das tias Pereira d’Eça, no Porto e em Viana do Castelo, o acolheram por diversos períodos de férias. 
Diz Tomás d’Eça Leal que numa dessas estadias chegou a namoriscar uma sua prima direita – no que terá contado com a oposição radical, quase feroz, do pai da dita menina (que era Pereira d’Eça pela mãe). 
Mas, fora umas magras memórias e seus relatos difusos, não existem dados sobre o seu comportamento ou feitio, as manias, os divertimentos e tropelias que todas as crianças ou adolescentes exibem de alguma forma e em vários momentos da sua ainda curta vida. 
Todo este vazio de informação mostra de alguma forma que, daquele rapazinho, não era costume falar muito – o que é revelador do incómodo que a sua situação, concretamente a familiar, continuava a causar. 
E a verdade é que este solitário jovem passou grande parte da adolescência num colégio interno, na cidade do Porto (o Colégio da Lapa), sem ir de férias a casa dos pais e irmãos – que chegaram a viver na mesma cidade e a escassas centenas de metros de distância do seu internato. 
O instantâneo mais objectivo da sua adolescência é feito por aquele que haveria de se tornar num dos seus maiores amigos – e também, por consequência, um dos seus grandes cúmplices intelectuais: Ramalho Ortigão
Ao referir-se a Eça, aquando da sua entrada para o Colégio da Lapa, no Porto, de que o seu pai era director, a «ramalhal figura» faz sobressair o olho bem aberto, «atento a tudo» – característica que atribui à generalidade dos filhos bastardos. Porque, se na verdade Eça deixara oficialmente de o ser no momento em que os pais casaram – e mais ainda depois, em Coimbra, quando começou também a usar nome da mãe (à semelhança dos seus irmãos) –, o facto é que o escritor fora efectivamente bastardo por via da relação pré-matrimonial dos pais. 
Eça só deixou oficialmente de ser bastardo pouco antes de casar, em 1886, quando pediu a Carolina Pereira d’Eça de Queiroz que assinasse os documentos que, de uma vez por todas, eliminariam o desagradável estatuto de «filho de mãe incógnita» que o acompanhava desde sempre. 
Mas, é claro, a marca do filho não desejado ficou. 
Presumo que tão tardia correcção deste aspecto formal se tenha ficado a dever a uma certa preguiça instalada relativamente a actos oficiais de teor tão incómodo (um deixar isso para mais tarde...), ao que se poderá juntar certamente o lento processo de real assunção vivido por Carolina Augusta. 
Por fim, o tempo acabaria por «acalmar tudo» – mesmo aquilo que a mãe de Eça, por muitos anos, não permitiu ver acalmado. 

A amizade de uma vida 

Há uma imagem que Eça transmite de si próprio que não pode ser escamoteada.
Ela surge no coração e na cabeça do jovem estudante de Direito que, em plena noite coimbrã, descobre pela primeira vez aquele que haveria de ser para sempre (e sem interrupções) um dos seus mais importantes e venerados amigos: o filósofo, o poeta, o idealista, o «santo» Antero de Quental
Antero de Quental
Este encontro casual – porventura inevitável –, foi na realidade uma autêntica descoberta para o futuro romancista. É um dos primeiros contactos dele com o idealismo que, por várias formas, o foi acompanhando pela vida fora. Tratava-se então do mais puro idealismo seminal, e não de uma qualquer ideologia germinal absorvida em Voltaire ou Proudhon, como o foi o socialismo que ambos acompanharam a espaços e de maneira diversa.
Eça viu em Antero (e julgo que nunca mudou de opinião) o arauto imutável da verdade, o coração mais aberto, amigo e honesto que alguma vez conhecera. O poeta açoriano funcionou, ele próprio, como uma obra de arte suprema perante os olhos ainda encandeados daquele iniciado recente. 
E o escritor recorda esse momento na abertura do seu in memoriam dedicado ao velho amigo. 
Recuando no tempo, Eça lembra a noite em que, no Largo da Feira, em Coimbra, vira «sob as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela Lua, que nesses tempos era romântica, um homem, de pé, que improvisava». 
A pequena mas atenta audiência de estudantes deixava-se hipnotizar por aquele «bardo dos tempos novos», que assim ia «despertando almas, anunciando verdades. O homem com efeito cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura (...)». 
Depois vieram a proximidade e a camaradagem próprias de tal química, sempre bem alimentadas pela grande curiosidade intelectual que Eça nutria em relação ao novo e singular amigo e às suas ideias enormes. 
A par desses momentos de alegria generalizada e grande êxtase estético e intelectual, ocorria também em Coimbra uma forte renovação cultural sustentada no permanente acesso a obras de autores como Hugo, Heine, Baudelaire, Nerval, Hegel, Michelet, Darwin ou Poe
Com a chegada dos caminhos-de-ferro à Península, «rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (...), torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários... Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo» – recorda o escritor. 
Tal caldeirão mental haveria de produzir efeitos de vária natureza – incluindo política: Garibaldi era o Che desses tempos que corriam encantados, e o anarquismo de Proudhon somava adeptos – materializados em grupos circunstanciais de estudantes que iam «ganindo a marselhesa» em marchas ruidosas e levantamentos pontuais. 
E «o ar de Coimbra, de noite, andava fremente de versos»... 
Eça vê em Antero a imagem do académico «revolucionário e racionalista», a mover-se com grande liberdade no seio de uma «Universidade ultraconservadora e ultracatólica», que «era não só uma escola de revolução política, mas uma escola de impiedade moral». 
E relata o mítico e incerto momento em que o poeta/filósofo, numa noite de forte tempestade eléctrica, «de relógio na mão, intimou Deus a que o partisse com um raio, dentro de sete minutos, no caso de existir»... 
Antero representou para Eça – e não só para ele – o cume da autoridade moral e da bondade em «constante aperfeiçoamento». 
Mas era também «o erudito pessimista», onde sempre coexistiu um inocente. «A justiça era nele ingénita. Assim era a verdade» – sintetiza o escritor. 
Também «o claro riso dos heróis» – «um riso generoso do ser que ama todos os seres» –, com que aquela espécie de irmão mais velho frequentemente se manifestava, nunca foi esquecido. Como também não o foram as ciclópicas dúvidas existenciais que, trinta anos mais tarde, acabariam por levar esse amigo tão especial – que «era um génio e era um santo» – ao suicídio. 
Foi pois com Antero de Quental que Eça de Queiroz conheceu o idealismo em plena actividade. 
Tal marca perdurou para sempre no íntimo do escritor. 

O bárbaro prosador 

Depois de Coimbra, Eça atinge uma idade em que a sua dimensão pessoal começa a ser episodicamente notada.
Vive agora em Lisboa – e finalmente com a sua família.
Jaime Batalha Reis
Tem um diploma de bacharel, mas passa a vida metido em jornais. Comporta-se como um dandy, veste-se de forma extravagante (mesmo para a época), levanta-se bem tarde e ceia lá pelo amanhecer. 
E se por momentos tenta o escritório, bem mais o tentarão a discussão criativa e a escrita – que chega caótica, por vezes rude, mas em torrentes contínuas. 
O retrato mais característico do José Maria chegado à idade adulta fê-lo de forma magistral Jaime Batalha Reis (JBR), no prefácio à edição póstuma de Prosas Bárbaras
A cumplicidade intelectual e a grande amizade que nasceu entre os dois é aqui descrita não só com graça superior mas também com um grande rigor documental. 
Entre outras coisas é um testemunho íntimo da Geração de 70
O primeiro contacto entre ambos deu-se numa altura em que Eça já publicara uns quantos folhetins, em ritmo mais ou menos incerto, na Gazeta de Portugal
A descrição de Batalha Reis, relativa a 1866, é demasiado divertida para ser truncada: 
«Uma noite, junto da mesa onde escrevia o Severo» (um velho redactor da Gazeta), «vi uma figura muito magra, muito esguia, muito encurvada, de pescoço muito alto, cabeça pequena e aguda, que se me mostrava inteiramente desenhada a preto intenso e amarelo desmaiado. Cobria-a uma sobrecasaca preta abotoada até à barba, uma gravata alta e preta, umas calças pretas. Tinha as faces lívidas e magríssimas, o cabelo corredio muito preto, do qual se destacava uma madeixa triangular, ondulante, na testa pálida que parecia estreita, sobre olhos cobertos por lunetas fumadas, de aros muito grossos e muito negros. Um bigode farto, e também muito preto, caía aos lados da boca grande e entreaberta onde brilhavam dentes brancos. As mãos longas, de dedos finíssimos e cor de marfim velho, na extremidade de dois magros e longuíssimos braços, faziam gestos desusados com uma badine muito delgada e um chapéu de copa alta e cónica, mas de feltro baço, como os chapéus do século XVI nos retratos do Duque d’Alba, de Filipe II de Espanha, ou de Henrique III de França.
Era o Eça de Queiroz». 
A imagem de avis rara um pouco agoirenta que JBR aqui descreve mostrava-se nervosa, e contava «o que quer que fosse a um tempo trágico e cómico (...), dando a espaços gargalhadas (...) curtas e sinistras». 
Já fora do jornal, Batalha e Eça procuraram onde jantar. Depois «passámos a noite juntos, e desde então, por anos, não nos separámos quase». 
Há um aspecto notável neste encontro objectivamente fortuito. Pois – à semelhança do que acontecera antes com Antero – também aqui tudo resultou numa amizade para a vida. E Eça fez, de várias formas e em vários momentos, muitos amigos deste calibre. 

Superstições, manias e experiências 

Auto-caricatura de Eça
«Sou eu e os meus abutres: vimos criar, devorando cadáveres!» 
Eis como José Maria se apresentava, já tarde, em casa do seu amigo Jaime, fazendo prever uma noitada movida a litros de café e varrida por farta ventania filosófica, que fatalmente terminaria numa ceia quase matutina frente a um bacalhau de cebolada e duas garrafas de Collares – algures num tasco escondido de Alfama
Mas este novo amigo de Batalha Reis tem várias manias! 
As correntes de ar aterrorizam-no como o silvar uivado da pneumonia, e sistematicamente interrompe a escrita para lavar a ponta dos dedos – como precaução contra eventuais infecções microbianas... Mostra um comportamento um pouco hipocondríaco, e é muito supersticioso nos actos mais vulgares. 
Explica então: 
«É preciso obedecer com fé e sem exame às leis subtis das coisas. Ninguém sabe exactamente, menino, de que possa depender o curso dos acontecimentos e o mistério complicado dos Fados». 
Os dias virados em noites multiplicam-se na relação entre JBR e Eça, habitualmente entremeados por ceias matutinas para as quais nem sempre há dinheiro e em que muito se improvisa. Até o dinheiro. 
No mesmo texto, Batalha Reis discorre no tempo e nas suas circunstâncias – as tendências artísticas, as influências que o futuro escritor então assimilava, as peripécias em que ambos se metiam, a criação do Cenáculo –, descrevendo pelo meio algumas experiências com hachisch
Tais experiências tinham então como precedente mais conhecido o de certa intelectualidade parisiense, com destaque para os poetas Charles Baudelaire e Teophille Gautier
E é em 1869, quando Eça de Queiroz e Luís de Castro Pamplona regressam da sua viagem ao Egipto – onde tinham assistido à inauguração do Canal de Suez –, que o hachisch entra na casa que Batalha Reis e Antero de Quental (integrando já o Cenáculo) dividiam em S. Pedro de Alcântara
A descrição que JBR faz da súbita aparição de Eça é de tal ordem que, como já antes aconteceu, só me resta transcrevê-la na íntegra: 
«Trajava uma longa sobrecasaca aberta de cuja botoeira saía, com coloridos, um enorme ramo de flores; cobria-lhe o peito, em relevo, um plastron que nos pareceu imenso, sobre o qual se erguia um colarinho altíssimo, onde a custo a cabeça se movia. Os punhos, que os botões uniam pelo centro com uma corrente de ouro, encobriam grande parte das mãos metidas em luvas cor de palha. Vestia calças claras, arregaçadas alto, mostrando meias de seda preta com largas pintas amarelas e sapatos muito compridos, ingleses, de polimento. Tinha na cabeça um chapéu alto, de pelo de seda brilhantíssimo. E olhava-nos com um monóculo que lhe estava sempre a cair e que ele, por isso, abrindo a boca em esgares sarcásticos, amiúde reentalava junto ao lacrimal do olho direito. Abraçámo-lo com entusiasmo – e cobrimo-lo com epigramas». 
Imagina-se a pose de Eça – que toda a vida foi um elegante –, já então reveladora da sua propensão para uma certa mania das grandezas, onde o principal opositor seria sempre uma irredutível e intermitente magreza de fundos. 
O recém-regressado conta agora aos amigos as suas aventuras pelo Oriente, as características e tipos das terras visitadas, «os guias, os cheiks, e à noite, em volta das fogueiras, os camelos “de expressão humorística, sorrindo ironicamente” e alongando as cabeças para escutar o narrador, por sobre os ombros dos beduínos atentos, graves e encruzados. Analisou, minuciosamente, as sensações que lhe dera, no Cairo, o uso do hachisch, e as visões fantásticas que nos preparava – porque ele e o conde de Resende haviam-nos trazido hachisch misturado a geleia, a bolos, e a pastilhas que se fumavam nuns cachimbos especiais». 
Luís de Castro Pamplona e Eça 
À semelhança de muitos outros intelectuais, Eça não deixou de experimentar os chamados paraísos artificiais que Baudelaire imortalizou em Du vin et du hachisch
Experimentou ele e trouxe também para os amigos – como é costume nestas coisas. 
No entanto, todas as excentricidades e esquisitices reveladas então pelo futuro escritor parecem apenas esconder uma personalidade peculiar que nada tem de contraditória – simultaneamente espalhafatosa e muito criativa. 
Em Évora faz um jornal quase por inteiro; com Ramalho Ortigão publicou O Mistério da Estrada de Sintra e o maior enxovalho à política nacional sob o título de As Farpas; finalmente, já em Leiria, onde foi administrador de distrito, congeminou O Crime do Padre Amaro
Ou seja: cedendo ao exterior uma imagem bastante exótica e por vezes algo estranha – provavelmente compulsiva e certamente pouco compatível com a ideia feita na época sobre a dignidade credível –, Eça revelar-se-ia rapidamente um homem para muitas obras. 
E até mesmo para grandes causas – como posteriormente se verá. 

Rindo-se muito, até de si próprio 

Como apontamento final a este retrato provável, entendo ser muito natural existirem leitores de Eça que desconhecem certos aspectos específicos do humor deste indivíduo singular, que conseguiu elaborar livros tão pesados como Os Maias, O Primo Basílio ou O Crime do Padre Amaro, e outros tão divertidos como A Relíquia ou tão belos como A Cidade e as Serras.
E admito mesmo que algum desse desconhecimento derive directamente de biografias deficientes ou da bravata redutora de pretensos conhecedores profundos do escritor e de toda a sua vida e obra.
Um dos exemplos mais interessantes desse humor subtil, que o escritor utilizava na generalidade da vida e nos mais diversos momentos – como testemunharam amigos, familiares e várias outras fontes –, sobressai na descrição que faz de João da Ega quando este visita o amigo Carlos da Maia no seu consultório do Rossio, chegado da Foz do Douro e da órbita sensual de madame Cohen
A meu ver, em Ega dá-se um caso verdadeiramente estranho, especialmente para quem o tenta perceber à distância de mais de um século. 
Trata-se da impossível apropriação, por parte do escritor, duma imagem que ainda não tinha sido exibida à data da publicação do seu romance mais celebrado. Refiro-me às descrições que Jaime Batalha Reis faz do seu amigo José Maria no prefácio às Prosas Bárbaras, que atrás citei, e que foi escrito três anos após a morte de Eça. 
Comecemos então pelos preparos elegantes e de exagerado espalhafato com que Ega se apresenta a Carlos, no final do capítulo IV de Os Maias: 
«Por aquele sol macio e morno de um fim de Outono português, o Ega, o antigo boémio de batina esfarrapada, trazia uma peliça, uma sumptuosa peliça de príncipe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tísico uma rica e fofa espessura de peles de marta». 
A descrição prossegue, aqui e acolá, a espaços, até ao fim do capítulo: 
«Tornou a recostar-se no sofá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monóculo no olho, examinou o gabinete». 
Mais adiante, reagindo o visitante ao calor excessivo que começava a sentir, «desembaraçou-se da opulenta peliça, e apareceu em peitilho de camisa». 
Já despido «da majestade que lhe dava a peliça, o antigo Ega reaparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mefistófeles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes frases, numa luta constante com o monóculo, que lhe caía do olho, que ele procurava pelo peito, pelos ombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. (...) Discutiam o naturalismo, Gambetta, o niilismo; depois, com ferocidade e à uma, malharam sobre o país...». 
Relendo o texto em que Batalha Reis relata o seu primeiro encontro com o futuro romancista, na redacção da Gazeta de Portugal, bem como a chegada de Eça da sua viagem ao Egipto, é imparável a tentação de apontar várias semelhanças físicas entre estes velhos instantâneos do escritor enquanto jovem e a personagem literária João da Ega. 
As roupagens não são exactamente as mesmas, mas quem as veste é igual a Eça: o «pescoço esganiçado e os pulsos de tísico», os «gestos aduncos de Mefistófeles» e o «sapato de verniz muito bicudo» compõem a imagem de alguém que cruza a sala com movimentos largos, «como se fosse voar ao vibrar as suas grandes frases, numa luta constante com o monóculo, que lhe caía do olho»... 
O escritor constrói a personagem exótica que Ega é, mas que é simultaneamente o jovem Eça mostrado por Batalha Reis: uma espécie de figurante principal na trama d’Os Maias, que ali se move comicamente e com muito estardalhaço – mas sempre na esfera da intimidade mais próxima do seu principal actor, como que vigiando-o. 
Imagino que, tal como eu, muitos serão os leitores desta obra que encontram mais semelhanças do escritor em Ega do que no futuro amante incestuoso – o quase introvertido e muito rico enfant gâté Carlos da Maia. 
Porque o romancista incorpora o sentido do cómico e do ridículo – que conhecia e explorava como ninguém – menos nas suas personagens centrais do que noutras que, sendo laterais (mas nunca periféricas), se apresentam por vezes num tom caricatural notoriamente autobiográfico. 
O escritor, detectável em Carlos da Maia unicamente por via do drama inequívoco do filho abandonado em criança pela mãe, serve-se de Ega como contraponto divertido à densidade por vezes sombria do conjunto do livro. 
Mas também, e claramente, para rir-se de si próprio. 
Esta é para mim a característica menos portuguesa de Eça. E talvez uma das maiores vitórias da sua personalidade. 
A propósito da capacidade de rir de si próprio – que nós, os latinos, atribuímos em especial aos ingleses –, vou novamente cair na tentação de estabelecer paralelos que, porventura, alguns acharão abusivos. 
Mas como é uma tentação não há nada a fazer. 
Refiro-me ao livro A Relíquia, que para o fantástico mas muito sisudo Fernando Pessoa terá sido a pior obra de Eça de Queiroz
Vale a pena lembrar o que disse Harold Bloom sobre este livro. Para ele, o romancista português conseguiu ali algo de verdadeiramente inédito: 
«Ele juntou Voltaire e Robert Louis Stevenson num único corpo, e deu-nos um romance genérico que é também uma soberba sátira, um triunfo único da literatura». 
Como esta obra representa o meu primeiro encontro privado com o meu bisavô escritor, não posso estar mais de acordo com a opinião do crítico americano. Porque, com a pouca idade que então tinha, A Relíquia foi realmente o primeiro livro que me fez rir a sério. 
E concluindo aqui a minha proposta sobre o humor do escritor – mas desta vez numa personagem bem central –, só posso acrescentar que não é muito difícil encontrar algo de Eça no malandríssimo, bastante despistado e muito divertido Raposão.

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