sexta-feira, 11 de novembro de 2011

CAPÍTULO IV - O oráculo de Agustina



É bem verdade que a teoria de José Hermano Saraiva foi a que melhor substância exibiu como matéria-prima para um Eça alternativo. Baseava-se, pelo menos, em algo que tinha hipóteses de ir a discussão.
Porque a minha primeira experiência nesta matéria foi, bem pelo contrário, muito penosa.
Surgiu na forma dum inacreditável texto da escritora Agustina Bessa-Luís (AB-L), publicado no ano do milénio a propósito das comemorações do centenário da morte do romancista.
Num primeiro texto, publicado no semanário Independente a 21 de Julho de 2000, a escritora apresenta, na sua coluna de bíblico nome ‘As sete chaves’, uma prosa crítica a respeito de uma «pequena festa» da efeméride que a terá enchido de irritação. 
Até aí tudo bem, e alguns dos aspectos mais ferozmente atacados por Agustina – como «aquelas mulheres embrulhadas em cortinas e colchas de cama» – são mesmo compreensíveis dada a imagem de pobreza envergonhada que correm o risco de transmitir.
Infelizmente (para a própria escritora, a meu ver), decidiu a 8 de Setembro voltar a falar do assunto, mitigando substancialmente a potência do seu desagrado inicial – vá-se lá saber porquê... –, mas dando à troca um muitíssimo singular contributo para as festividades em causa.
Como expliquei no primeiro texto publicado no Expresso (‘Fábulas circulares...’), Agustina entende que Eça de Queiroz podia perfeitamente ser filho de uma das quatro meninas da família Carneiro Pizarro.
Dentro desta lógica toda abrangente, e alargando mesmo um pouco mais democraticamente a copa desta autêntica ‘árvore ginecológica’(1) a todo o universo feminino que rodeava o então muito jovem José Maria, é caso para dizer que ele poderia perfeitamente ter sido filho duma boa dúzia de mulheres...
Ora a escritora portuense – certamente baseada em misteriosos e telúricos murmúrios – entende simplesmente que Carolina Augusta Pereira d’Eça nunca fez parte de tal universo. Ao que lhe soma a ainda mais estapafúrdia (im)probabilidade de também José Maria Teixeira de Queiroz nada ter tido a ver com o sucedido!...
Eis como AB-L chega às suas absurdas conclusões, em textos do Independente que adiante reproduzo nas partes que abordam o assunto. 
O primeiro, crítico das tais comemorações a que assistira, acaba na fórmula sentenciosa a que autora de Mundo Fechado sempre foi tão apegada: 
–«Não o comemorem com lengalengas e teatradas. Leiam-no, mas não se metam com ele. Deixar uma obra não é deixar o corpo na escada. Não passem por cima dele, se fazem favor».
Pois bem!, isto até se pode perceber.
Sendo assim, e depois de tão assisadas palavras, a última pessoa que se imaginaria ver a passear «por cima» do corpo de Eça – a meter-se com ele – seria, obviamente, Agustina.
Mas a vida – mesmo a de alguns escritores muito publicados – tem por vezes contradições bem profundas. E foi certamente num desses momentos de caótica sublevação interior que AB-L volta a pegar no tema, mês e meio depois – mas desta vez numa toada tão cacofónica que, se fosse música, deixaria Stockhausen e Peixinho literalmente à beira duma neurastenia sem retorno.
Como se verá, é um discurso próximo do inimputável, de técnica pueril e argumentação leviana, onde a escritora afirma imensas certezas sem conseguir identificar uma única. Trata-se de genuína peça agustiniana, quer pelo estilo embrulhado, quer pelo enorme desprendimento que exibe – a pontos da mais pura lógica ser objecto do seu distante menosprezo. 

  1. (Esta definição tem direitos de autor: foi inventada inadvertidamente pela minha prima Mariana, aos 12 anos. O seu pai e meu tio, Manuel Eça de Queiroz, usava-a sempre que tal viesse a propósito) 

As chaves do pavor 

Diz Agustina Bessa-Luís, num texto titulado de ‘Pavor’, na sua coluna ‘As sete chaves’:

–«Não me vou desdizer, mas aquilo que eu disse sobre as comemorações queirosianas referia-se a uma pequena festa que me foi dado observar e que me encheu de irritação. Era a força pimba a entrar na área da cultura espirituosa a que Eça pertence. Dum modo geral as comemorações sejam do que for obedecem a propósitos reservados e são movidas pela impaciência. Não se escolhem os melhores para comparticipar num programa, e compreende-se porquê. Os melhores têm por eles a tirania das próprias opiniões, que são capazes de fazer adeptos no sentimento do público. Os melhores envenenam essa proeza de fazer coisas, porque são em muitos aspectos intratáveis e inimigos da tradição.
Desenho de Pedro Pimentel
Ainda é talvez cedo para levantar o véu da fantasia sobre a vida de Eça de Queirós. Quando eu vivia na Póvoa contavam-se as peripécias do seu nascimento duma maneira muito menos confidencial do que agora. José Régio mostrou-me em Vila do Conde a casa da roda onde o recém-nascido teria sido posto e depois entregue a uma ama de ocasião. Era triste de ouvir uma história à Dickens que não foi ainda escrita, como outras não foram.
Tanto Póvoa do Varzim como Vila do Conde disputam a honra de serem berço de Eça de Queirós. A mãe, figura controversa e mal explicada, foi quem conduziu a história, com mais orgulho do que sentimento brando no coração. Era natural de Viana do Castelo e há notícia de Eça ter nascido lá e depois levado para Vila do Conde, para casa dos Carneiro Pizarro, parentes prováveis da dita menina Carolina Eça. São coisas para desvendar e pôr em ordem. Muita gente mentiu nisto do nascimento de Eça de Queirós. A primeira foi Carolina, que disse que o filho nasceu na Póvoa. Talvez para despistar os curiosos da casa da Costa cuja gente ela respeitava e na sombra de quem andou a criança até deixar o colo da ama e depois provavelmente também. Estes segredos espevitaram o snobismo do escritor, com sangue de reis nas veias? Seria Eça filho natural dos Carneiro Pizarro, o que simplificava muito a sarabanda de contradições e fingimentos com que o próprio romancista pactuou? Eça tinha verdadeiro pavor de que lhe fizessem a biografia, e disse: “Eu não tenho história, sou como a República de Andorra”. Nesse caso tanto a desalmada Carolina Augusta como o magistrado Teixeira de Queirós não passariam de pais putativos. José Carneiro Pizarro de Magalhães regressou do Brasil a Portugal em 1821, vindo habitar a casa da Costa em Vila do Conde. Uma filha morreu louca, outra foi freira, outra, açafata de D. Carlota Joaquina, morreu solteira, assim como a irmã Maria Henriqueta. Qualquer delas podia ter sido mãe de Eça de Queirós, e só assim havia razão para tanto mistério. Eu lavo daí as mãos, mas tão manchadas de tinta andam que nunca mais vão ficar limpas de balbúrdias em risco de serem verdade. O meu contributo para o centenário de Eça de Queirós é este: ele podia ter sido um Carneiro Pizarro. 
Eu acrescento alguma coisa, não corrijo”, como diria o mestre Montaigne».

«Peripécias» e José Régio 

Ora aqui está um bem sinuoso exercício de malabarismo mental! 
A escritora parte das mais hipotéticas condicionais, ergue um enorme e grotesco edifício de causalidades inaceitáveis num discurso lógico..., e tudo com base em quê? Em conversas de café tidas com o poeta e escritor José Régio – provavelmente na naturalíssima posição de aluna do professor
E acha que isso prova tudo!, e que assim já se obtém toda a clareza sobre o caso, que se «simplificava a sarabanda de contradições»... 
Eu, muito sinceramente, considero que trocar a versão que conheço por semelhante confusão seria como renegar a antiga e difícil estrada que ligava o Porto a Guimarães – antes das auto-estradas – para me enfiar de cabeça no medonho labirinto de Minos (se é que tal coisa alguma vez existiu!). 
Mas, à boa maneira romântica, a escritora gosta mais dos labirintos pavorosos...
Diz a dado momento AB-L que «ainda é talvez cedo para levantar o véu da fantasia sobre a vida de Eça de Queirós», dando a entender que um dia o fará. Recua depois sob a protectora asa de Régio até aos dias em que vivia na Póvoa do Varzim, quando se contavam «as peripécias do seu nascimento» (de Eça) «duma maneira menos confidencial do que agora». 
Ficamos assim a saber que nesses tempos já idos havia, tal como hoje, muita balela e ‘conversa de soalheiro’. 
Régio mostrou-lhe a casa da roda onde o recém-nascido «teria sido posto» – ou não!, convém lembrar... «Era triste de ouvir uma história à Dickens que não foi ainda escrita, como muitas outras» – compadece-se finalmente AB-L.
E tão compadecida estava nesse momento de zénite emocional, que não hesitou em meter-lhe pelo meio umas quantas malaguetas da sua lavra. Para dar mais picante à coisa. 
Peremptória, Agustina afirma: 
«Muita gente mentiu nisto do nascimento de Eça de Queirós. A primeira foi a Carolina,» (Pereira d’Eça) «que disse que o filho nasceu na Póvoa do Varzim, talvez para despistar os curiosos da casa da Costa» (propriedade dos Carneiro Pizarro), «cuja gente ela respeitava e na sombra de quem andou a criança até deixar o colo da ama e depois provavelmente também»...
Que diabo! Um hipotético mas ainda presumível «respeito», um mero e meio perdido «talvez» e um vaguíssimo «provavelmente» não auguram nada de bom a uma acusação onde se começa por classificar taxativamente como manipuladora e mentirosa jubilada a mulher que assumiu e confirmou, de jure, ser a mãe do escritor.
Como diria o próprio Eça ao amigo e historiador Oliveira Martins, a propósito de minuciosa reconstituição histórica da Batalha de Aljubarrota que este fizera: «Mas diga-me aqui uma coisa: você esteve lá?!...»
Depois, o total desconchavo explode em farândolas no momento em que a autora de Sibila se propõe encarnar uma das sacerdotisas de Delfos – que, como toda a gente sabe, era um oráculo que escondia a sua paupérrima objectividade numa infinidade de pormenores circunvizinhos e inúteis.
Responde, a dado momento, uma agora inquisitória AB-L: «Estes segredos espevitaram o snobismo do escritor, com sangue de reis nas veias? Seria Eça filho natural dos Carneiro Pizarro, o que simplificava muito a sarabanda de contradições e fingimentos com que o próprio romancista pactuou?» (coisa espantosa!, esta última...). 
Em seguida pega na célebre frase em que Eça diz não ter história e ser «como a República de Andorra» para concluir que «nesse caso» (mas qual caso?!?) «tanto a desalmada menina Eça» como Teixeira de Queiroz seriam apenas «pais putativos»... 
Depois, subitamente, encerra a questão com um breve historial dos Carneiro Pizarro, que tiveram quatro filhas: uma maluca, outra freira, outra criada da rainha e solteirona – «assim como a irmã Maria Henriqueta. Qualquer delas podia ser mãe de Eça de Queirós, e só assim havia razão para tanto mistério». 

Uma carta em branco 

Como já antes afirmei, não acredito na existência de uma só pessoa no mundo inteiro que, no seu perfeito juízo, aceitasse desempenhar tamanha farsa sem fortíssimas razões. Ora AB-L descobre logo duas numa penada. E consegue mesmo casá-las – embora não nos consiga explicar quais as fortíssimas razões que levaram duas pessoas distintas a praticar tão improvável acto em simultâneo. 
A seguir (claro!), põe-nas a perfilhar uma suposta criança enjeitada (não se sabe ao certo por quem...) e, ao mesmo tempo, obriga-as a inventar toda uma complicada história de amantes desavindos em que até as famílias – presentes e futuras – deverão pactuar.
É, sem dúvida, uma história absolutamente única – mas com factos apenas imputáveis a um razoável bando de doidos reunido especificamente para o efeito, a pedido exclusivo da escritora Agustina Bessa-Luís, que, além de acrescentar «alguma coisa» e não corrigir, como diria mestre Montaigne!, parece também gostar de se vestir de pitonisa, lá pela Rua do Gólgota... 
Pessoalmente estou convencido de que no meio de toda esta salgalhada monstra (ou será apenas uma «sarabanda de contradições»?...), onde a escritora presume «levantar o véu» a apolíneos mistérios, medra um desejo bem real e antigo: o de um dia pôr as mãos na célebre carta (que nunca ninguém viu!), que poderia (talvez...) estar na posse de herdeiros da família Carneiro Pizarro... 
Isso era cá uma festa!
Mas, com tantas incógnitas subjacentes, é aceitável duvidar que tal coisa possa algum dia acontecer.
Tenho, no entanto, uma convicção intuitiva: se semelhante documento existe de facto, mais não é do que o texto original da carta apensada por Teixeira de Queiroz ao assento de baptismo do filho. Apenas porque não é crível que a missiva entregue em Vila do Conde ao padre Domingos de Sillos fosse fisicamente a mesma que dias antes – por prioridade natural – informara Carolina Augusta das decisões do homem com quem acabaria por casar quatro anos depois.
Há ainda uma curiosa interrogação da escritora cuja origem julgo vislumbrar. Trata-se da frase «com sangue de reis nas veias». A origem do pretenso «snobismo» para que Eça, espicaçado por Carolina, despertou um dia – segundo depreende Agustina. 
Aqui convém lembrar que snobismo é, antes de tudo, uma pose caracterizada pelo empolar do próprio bem-estar material e de falsos feitos, ou de pretensas ligações familiares nobres, como forma de esconder uma evidente e (assim) bisonha vulgaridade. Utilizando o próprio bestiário queirosiano, Dâmaso Salcede e a sua muito chic coroa de conde a encimar o cartão-de-visita representam, da cabeça aos pés, o snob completo.
Thackeray não explicaria melhor. 
Assim, considerar os tiques de elegância que Eça exibia como o resultado dum seu qualquer «snobismo» parece-me um julgamento no mínimo destemperado. 
Mas há também o enigmático «sangue de reis». E é tão mais enigmático porque, certamente, AB-L não lhe confere substância pelo facto de todos os genealogistas portugueses (pelo menos os que conheço) considerarem que o nome Eça foi usado pela primeira vez em Portugal por um neto de D. Pedro I e Inês de Castro (D. Fernando d’Eça).
Não! – é evidente que a ideia da escritora deve ser bem outra, muito mais secreta e bem mergulhada nos mistérios tortuosos do real «tronco» e do romance... 
Seja como for, e considerando: que Agustina Bessa-Luís nasceu numa família de algumas posses; que não lhe é conhecida nenhuma ascendência aristocrática; mas que também não se reclama duma inequívoca extracção popular; é pois aceitável considerá-la inserida num meio sócio-cultural eminentemente burguês. 
E este estatuto assume-se por vezes no Porto como bastante anti-aristocrático.
Ou seja: é de aceitar, porventura, que o tal «sangue de reis» misturado no de um congénere de letras (e logo de tamanha dimensão) possa ser coisa para deixar agoniada uma burguesa implícita do calibre de AB-L – como poderá, bem entendido, ser o caso.
E isto também explicaria muito do que resolveu escrever no Independente.
No fim a escritora «lava daí as mãos», encerrando com uma pomposa declaração paternalista de Montaigne esta sua espécie de conglomerado de paralogias erráticas, só possível na cabeça duma pessoa dotada de alguma imaginação mas (talvez por viver num condomínio fechado da existência) muito inexperiente no palco da vida real. 
O que também acontece. 

‘Doidos e amantes’,
à falta de melhor... 

Já em meados de 2005, a publicação do romance (?) Doidos e amantes (Guimarães Editores) acabaria por provar que AB-L não deitou mesmo as mãos à tal carta misteriosa que deveria explicar em definitivo o nascimento de Eça.
Esta insuficiência – que certamente emperrou a criação duma obra de maior fôlego (algo «à Dickens», por exemplo...) – exigiria à escritora um plano de contingência que lhe permitisse, pelo menos, contar mais um pouco das historietas que ouviu a Régio.
Para tanto, aglutinou-as numa espécie de pequeno quisto caloso, improvável, que sobressai sem elegância ou préstimo na superfície plana da sua átona narrativa sobre uns certos amores incompreendidos e maltratados.
Como fonte ideal para as suas ‘secretas verdades’, Agustina saca dum tal Freirão – um alegado rei da má-língua vilacondense dos meados do séc. XX (talvez uma espécie de alter-ego de Régio) – para tornar a desenrolar as «peripécias» do seu Eça facultativo. 
Freirão regurgita um veneno vulgar, engrossado ao sol dos portais de quintais onde passa a vida a caçar pardais (percebe-se do relato de Agustina...), falando de tudo e de todos com a prontidão exibicionista dum qualquer ‘papagaio’ social – que na melhor tradição meridional deveria ser barbeiro ou cabeleireira.
Com isto permite-se a narradora ao alinhavar duma amálgama de impropérios, quer a respeito de Eça, quer dos seus ascendentes: o «avô patético»(1), a roda, as saias das burguesas onde Eça se refugiava (quanta psicologia!), o escritor em Paris, «de monóculo, como um prior no seu priorado» (os priores desse tempo usavam todos monóculo, fica-se portanto a saber...) – e até, imagine-se!, a duvidosa qualidade da sua obra –, são apenas alguns dos mimos que Freirão debita, AB-L ciosamente aponta no seu filofax mental, e eu por fim li, consideravelmente estupefacto.
A casa importante já não é a da Costa, dos Carneiro Pizarro. É da Cerca.
Mas o ‘diz-que-disse’ é sensivelmente o mesmo que espetou no Independente. Só que agora com mais uma pouca de paprika. Porque Agustina também desenterra um certo Dantas – muito calisto! – para dizer que Eça «era um diletante» e que sabia muito bem «quem lhe pagou a carreira».
É curioso ver como Agustina redimensiona e redesenha o escritor/diplomata através do tal Dantas (será o mesmo que eu imagino?...). No seu lucubrar, o nosso Dantas diz a AB-L (e a todos os que por fatalidade a leram depois) que o indivíduo José Maria Eça de Queiroz – o homem, o escritor, o diplomata – era apenas um diletante e que só entrara na carreira com a ajuda de gorda cunha.
Em relação ao diletantismo propriamente dito, não deixa de ser interessante verificar como um escritor tão prolífico como Eça constrói a sua obra: furiosamente, trabalhando sempre que pode e até altas horas, revendo provas até à exaustão (dele e dos editores) e não publicando múltiplos trabalhos por entender que não estavam no ponto certo – afinal, todo um vasto conjunto de textos publicados postumamente pelo seu filho (e meu avô) José Maria.
Convenhamos que, como mero diletante – que será sempre alguém que está na arte com ligeireza, num exercício sem profundidade ou real empenho –, Eça não se saiu nada mal. Mesmo nada! 
Quanto às queixinhas ruminadas pelo velho Dantas (sempre serviu para tudo, pobre coitado!...) sobre as putativas cunhas na carreira diplomática do romancista, só consigo lembrar o que sempre valeu por verdade dentro da família: que Eça concorreu ao cargo, obteve a melhor qualificação possível, e o governo de então ter-se-á sentido bastante aliviado por poder mandá-lo para bem longe de Portugal.
E para longe ele foi, porque o seu primeiro cargo consular seria na longínqua Cuba colonial – e não numa qualquer capital europeia bem mais habilitada a aconchegar convenientemente um diplomado em cunhas. 
Foi por ali, esquecido no meio do Caribe, no «infecto paliteiro de palmeiras» (a sua classificação para a antiga colónia espanhola), que Eça de Queiroz iniciou a carreira de cônsul de forma absolutamente exemplar.
Ou seja: se foi cunha, o escritor justificou-a muito bem – como mais adiante demonstrarei.
A concluir o dossier AB-L, resta-me uma observação sobre a relação acre que sinto nas suas ideias e juízos a respeito de Eça: parece esconder mal uma estranha e dúplice atmosfera de amor/ódio, qualquer coisa de muito – mas mesmo muito! – freudiana. Ou que o valha.
Porque considerando de boa fé que a citada senhora não é pessoa intrínseca e naturalmente malévola, torna-se então quase inevitável pensar que ela se expôs, nos seus textos sobre o escritor, como alguém tomado por um totalmente descontrolado sentimento de inveja. Visível na forma tentada e constante de ‘destruição do mito’ a que se agarra ferozmente quando decide falar dele. Talvez por desconfiar que daqui a cem anos não serão muitos os que saberão o que ela escreveu – enquanto Eça, muito provavelmente, continuará a ser lido, comentado, criticado, analisado e discutido.
Como costuma acontecer aos vultos de dimensão mundial.

E agora, seguindo o elevado exemplo da muito publicada e bastante premiada Agustina – que é também elemento frequente de júris literários e demais festividades (mas só das melhores!) –, também eu lavo daqui as minhas mãos... 

  1. É evidente que a escritora portuense nada sabe sobre o avô de Eça, o juiz-desembargador Joaquim José de Queiroz. Como tal remeto-a para o capítulo X, onde abordo a vida deste meu «patético» tetravô maçon... 

Nota do autor à edição digital:

[Já depois de publicado este meu Eça de Queiroz e os seus clones, tomei conhecimento das razões que estiveram por trás desta especulação selvática por parte de Agustina. De acordo com tal informação, a escritora portuense enveredou pela sua teoria quando soube que um médico brasileiro afirmava ir provar que Eça tinha morrido com paramiloidose – a tristemente célebre Doença dos Pezinhos. Daí a achar que o Eça era afinal filho dum pescador poveiro (a doença é endémica da comunidade piscatória e seus descendentes) foi uma questão de dar corda ao relógio. No entanto, bastava-lhe ter verificado previamente que Eça nunca apresentou nenhum dos sintomas desta doença, a qual antes de matar deforma o corpo nas extremidades. Na verdade, os estudos mais recentes da sintomatologia conhecida (porque relatada pelo escritor aos seus médicos) parecem apontar para uma igualmente grave e mortífera maleita: a doença de Crohn, uma inflamação estomacal crónica que provoca a magreza extrema e dores agudas do estômago – entre outros sintomas evidenciados por Eça no fim da sua vida.]

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