sábado, 19 de novembro de 2011

CAPÍTULO XII – Abençoada ignorância!...



Já perto do final da jornada, fui outra vez surpreendido por uma conjugação de acontecimentos que acabaria por inscrever mais um pouco de magia na viagem espácio-temporal que efectuei pela galáxia Eça de Queiroz
O primeiro elemento é uma data: o dia do Pai – o dia em que os católicos honram S. José. Nesse dia recebi da minha filha uma prenda de intenção óbvia: era O Segredo de Eça – Ideologia e Ambiguidade em A Cidade e as Serras, do luso-americano Frank F. Sousa, prefaciado pelo professor catedrático e grande queirosiano Carlos Reis
Curiosamente, é neste prefácio absolutamente insuspeito que encontro o ‘tapete mágico’ que me levaria ao último troço desta minha muito excitante e enriquecedora aventura de mais de dois anos. 
Carlos Reis escreve sobre algo que provou a minha ainda grande ignorância no que respeita à obra do meu extraordinário bisavô. Hoje considero tal ignorância próxima do intolerável, ainda que tenha de aceitar que tal facto muito contribuiu então para a minha felicidade. 
Diz o conhecido académico a dado passo do seu prefácio: 
«(...) para já não falar em diversos contos (como o notável José Matias) e em não poucos textos doutrinários (...)». 
José Matias?, notável?!... Mas eu nunca lera aquilo! Escapou-me, escondeu-se-me – que diabo!, como foi isso possível?... 
Mas foi e não há nada a fazer. 
Para cúmulo, quando o procurei no meu ajuntamento de livros, tinha-o não só em três edições diferentes dos Contos, mas também em separata – editado a par do primeiro esboço de A Cidade e as Serras, um texto titulado de Civilização
Rapidamente supri a minha falta e, nessa mesma noite, li de enfiada (o que não é difícil) o até então totalmente ignorado José Matias
Fiquei siderado! Três personagens, sendo que uma não fala (o ouvinte/leitor), outra é o narrador, e a terceira (a principal) vai a enterrar? 
O narrador surge-me como um fala-barato (fala caro e muito), que, com sarcasmo algo velado, se distancia de forma quase asséptica do objecto da narrativa – o recém-finado José Matias de Albuquerque e os seus amores e desamores. Há neste narrador uma pompa arrogante que oscila entre o proto-hedonismo elitista de homem de muitas letras e teses e o toque de uma compaixão que roça o desprezo. 
O final é idêntico ao d’Os Maias: seco e inócuo como o aceno casual que se atira na rua a um quase desconhecido. 
Pelo meio fica a história misteriosa e pungente dum homem violentamente apaixonado que nunca chega a possuir o objecto da sua paixão. 
E, no entanto, Elisa também quer o amor de José Matias: mas, como honesta mulher casada que é – ainda que de um velho doente –, nunca permitirá que se estilhace a fina mica que separa a atracção física já sinalizada da paixão preparada para invadir. 
Finalmente viúva, espanta-se perante a distância que José Matias se impõe – a pontos de se fartar da espera e casar com outro homem. 
Enviuvada pela segunda vez, e mantendo-se a casta teimosia do seu ainda e sempre amado, arranja então um amante. Pudera... 
Em contraponto, a enigmática (?...) personagem principal – que agora todos acompanhamos até à tumba – estoira uma fortuna recém-herdada no jogo e em bebedeiras desconjuntadas. Dá mesmo uma festa-escândalo com tudo o que é meretriz do Bairro Alto
Acaba o (fatalmente) infeliz à chuva, esquálido de alcoólico, já sem vintém no bolso – mas sempre em permanente vigilância nas imediações de Elisa. 
Estranhamente, esta obsessão não o leva a perseguir os passos da amada, mas antes os do amante desta. Só para ver se ele lhe é fiel. Fidelidade que confirma com agrado ao verificar que o homem que ocupa o seu lugar compra flores para a mulher que, afinal, José Matias ama compulsivamente. 
E fim – que «com efeito está frio». 
Quase imediatamente formulei uma teoria sobre o porquê de tão estranho comportamento. 
Na verdade, não liguei nada ao papaguear filosófico do narrador, sempre muito varrido a fortes rajadas de Hegel levemente perfumadas de Schoppenhauer. E mais uma salada de gregos (dos antigos, convenhamos). 
Antes, no entanto, ainda pensei nos patéticos despojos de Eric Satie – encontrados logo após a sua morte – e na sombra de nostalgia patente no enorme acervo de cartas de amor que o singular compositor francês escreveu ao longo da vida e nunca chegou a enviar. 
Mas depois, devagarinho, Satie fechou o piano e a minha teoria começou a ganhar terreno. 
José Matias ama ideal e absolutamente. O seu imenso amor surge exacerbado na fidelidade canina que demonstra por várias vezes através do conto – até à última. Ele aceita, compreende as necessidades físicas da bela e saudável Elisa. Ele aceita isso de tal forma que até vigia os passos... do seu animal de cobrição?!... 
Eça nunca escreveu sobre personagens especialmente complexas. Fradique Mendes será talvez a mais invulgar das criações de Eça – provavelmente porque foi a que mais capacidade inventiva exigiu do escritor e porque Antero de Quental também deu uma ajuda no arquétipo.
Mas Fradique foi construído de raiz, e, tal como Jacinto e Ega, sugere apontamentos auto-biográficos. 
A verdadeira complexidade em Eça está antes nas situações criadas e nas suas envolvências, onde evolui gente genericamente comum mas muito bem caracterizada: Abranhos, Amaro, Maria Monforte, Dâmaso, Ramires, a S. Joaneira, Luísa, Basílio e até o exótico Ega ou o sofisticado Jacinto não são nenhuns caixotes de paranóia. 
Já com as trapalhadas em que Eça os mete a história é bem outra. 
Como o prova o caso do vulgaríssimo José Matias – que, quis a Natureza (e Eça principalmente), era sexualmente incapaz. 
Ou seja: um coitado dum impotente. 
Matias está próximo da amada enquanto ela está casada com um velho doente – tão incapaz como ele próprio. 
Quando Elisa casa pela segunda vez – e afinal com uma segunda escolha –, a distância a que o protagonista desta paixão não consumada se coloca explica-se pelo inevitável ciúme carnal que então sente e não controla: o marido agora é viril! 
Tudo muito compreensível. 
Ele odeia a situação, mas sabe que o culpado só tem um nome: o seu – José Matias de Albuquerque, mais a sua ignóbil insuficiência, que recusa confessar à amada. 
E como nada pode fazer para alterar os factos, entra resolutamente em dissipação. 
O banquete de prostitutas ilustra a catarse que se auto-impõe. 
Já na miséria, um assomo de dignidade residual impede-o de aceitar a caridade ‘anónima’ de Elisa. Esta réstia de orgulho masculino está em perfeita sintonia com o silêncio a que se remete sobre a real razão porque não estão os dois juntos – como pedem os seus corações.  
Ao vigiar os passos do amante da sua amada, o pobre do José Matias já só quer assegurar – totalmente despojado que está doutras pretensões – a felicidade possível da mulher que amará até à Eternidade eventual, que um dia acabará por chegar. 
E, afinal, o que fazem ali uma data de gregos antigos, mais o Hegel e o Schoppenhaur? Na minha sincera opinião – que diga-se de passagem não é especialmente modesta –, divertem-se a confundir parolos. 
Muito simplesmente. 
A sugestão de que José Matias é um tabuleiro onde o positivismo e o niilismo disputam uma partida de xadrez, tolhendo-lhe assim qualquer movimento ou vontade, apresenta-se-me com a consistência da névoa. 
Eu acho o escritor Eça de Queiroz bem capaz desta pequenina maldade. 
Como o acho também capaz da inaudita elegância exigível a quem pretendesse falar de uma maleita que, ao tempo, seria certamente muito complicada de abordar. 
A elegância é tal que o assunto nem sequer é aflorado. 
Como diz a professora Isabel Marnoto no seu ensaio sobre José Matias – publicado no Dicionário de Eça de Queiroz (A. Campos Matos, Editorial Caminho) e que eu li depois de devorar a matéria-prima –, este singular conto, apresentado de forma tão ambígua, deixa aberta a porta a todas as interpretações. E em qualquer época. 
Esta é a minha e parece-me razoável. 
No entanto, sei bem que, quando tornar a ler José Matias, irá por certo acontecer o que sempre aconteceu com a releitura de outras obras do escritor (e não só dele): a descoberta de pormenores que antes me escaparam, por vezes suficientes para me levarem a reconsiderar muito do que deduzira da primeira vez. 
E então talvez Satie, Schopenhauer, Hegel, os gregos e o pomposo narrador possam vir a ter outro papel na minha percepção de tão magnífica short-story
Há mais um Eça na minha vida – e eu sinto-me mais rico. 

Uma progressão no Tempo[i]

Em Eça de Queiroz e os seus clones defendi que o até então por mim ignorado José Matias era, fundamentalmente, uma fabulosa narrativa sobre o amor impossível de alguém simultaneamente vulgar e excessivo: vulgar porque é assim que o caracteriza o Filósofo (o narrador), embora até esta vulgaridade já contenha em si algum excesso; e excessivo porque se trata implicitamente de um ser hiper-romântico (nada de incomum nos finais do séc. XIX e arredores).
Na minha opinião então expressa, a que agora apenas acrescento um outro argumento, o grande problema de José Matias é tão só a sua inconfessável impotência física – razão única para a distância que impõe à amada Elisa quando esta adquire, por duas vezes, o apetitoso estatuto de jovem, bela e rica viúva disponível.
Por duas vezes também fui confrontado com uma provável leveza de apreciação na minha abordagem ao dramático personagem desta incrível história. Da primeira vez, numa troca de opiniões, Alfredo Campos Matos (para mim o mais completo biógrafo de Eça) aceitou em parte a minha generalização – mas apenas como sendo a consequência de algo muito mais profundo e complexo do que a disfunção sexual tout court.
Poderá ser assim.
Mas eu defendo que as personagens de Eça não são particularmente complexas na sua essência – talvez com a excepção de Fradique Mendes (consta que resulta da fusão de modelos de Antero, Batalha Reis e Eça num mesmo ego) e de Jacinto, que sempre me pareceu uma projecção tardia do próprio escritor. O ódio social de Juliana é profundo mas, embora espantosamente elaborado, não passa de ódio temperado a ganâncias – poderoso e rebuscado mas tremendamente elementar como sentimento.
O que me parece mais complexo em Eça não são os personagens mas sim as circunstâncias em que estes evoluem.
Matias fundamentalmente ama imenso, e ama com uma totalidade tão perene que isso o levará à morte – ou a procurá-la até a encontrar. Porque sabe que a sua paixão nunca poderá ser consumada. Foi essa a ideia com que fiquei mal acabei de ler o conto.
Agora, mais concretamente no passado dia 25 de Novembro de 2009, na inauguração das novas instalações da Escola Secundária Eça de Queirós, nos Olivais, onde estive como convidado – e a propósito da minha reafirmação da característica fundamental que na minha opinião explica o estranho comportamento de José Matias –, um dos presentes propôs antes a melancolia como sendo o principal condimento da sua estrutura.
Curiosamente, este termo acabaria por se virar a meu favor como um vento de bolina – numa altura em que me embrenhava na leitura de Ao encontro de Espinosa, do neurocientista António Damásio.
E porquê este inopinado favorecimento do meu raciocínio?
Muito sumariamente, Damásio explica-nos ao longo do seu brilhante livro que aquilo que somos e fazemos resulta sempre dum permanente diagnóstico cerebral e interactivo do estado do organismo como um todo, e do negócio recíproco entre emoções e sentimentos. Torna-se assim claro que qualquer alteração das condições neurobiológicas de um ser acarretará sempre uma qualquer alteração no seu comportamento mental e/ou físico, dada a interacção e a certa reciprocidade dos efeitos de tal perturbação – sublinhando-se assim o que já se observava em O erro de Descartes.
Com Damásio a espreitar-me por cima do ombro, dei comigo a pensar que se a melancolia pode porventura resultar em impotência física – e seria óptimo saber o porquê da tal melancolia –, então o contrário deve ser ainda mais verdadeiro (derive a suposta incapacidade de dano corporal, de trauma psicológico, ou de uma qualquer disfunção neurológica).
Foi nesta reversibilidade de sentimentos e emoções físicas que parti para uma leitura em sentido inverso do sem dúvida enigmático conto de Eça (hoje reconheço-o melhor assim).
Ao terminar o seu monólogo virtual – e depois de observada a bizarra mas sincera homenagem que Elisa envia ao recém-falecido através do seu amante, um mero apontador de obras –, o Filósofo lembra ao sujeito passivo (o leitor) a aparente ambiguidade do José Matias:
Grande consolo, meu amigo, este apontador com o seu ramo, para um Metafísico que, como eu, comentou Espinosa e Malebranche, reabilitou Fichte, e provou suficientemente a ilusão da sensação! Só por isto valeu a pena trazer à cova este inexplicado José Matias, que era talvez muito mais que um homem – ou talvez ainda menos que um homem…
Ora se podemos considerar que Matias, o «coração de esquilo», poderia ser «muito mais que um homem» dada a enorme firmeza da sua paixão, também podemos considerar que ele seria «ainda menos que um homem» porque lhe faltava algo de fundamental para que fosse simplesmente um homem inteiro – nem a mais, nem a menos.
A ciumeira despertada pelo segundo casamento de Elisa, que finalmente encontra alguém que lhe explique o que é a masculinidade no seu activo pleno, desaparece entretanto do comportamento de José Matias, muito misteriosamente, quando a sua eterna e obrigatoriamente platónica paixão toma um amante – por morte súbita do potente segundo marido.
O personagem central muda então de atitude: deixa de roer o duro osso do ciúme, preocupando-se antes em saber se o novo parceiro íntimo de Elisa, o simplório mas crivelmente viril apontador de obras, lhe é fiel…
Haverá comportamento mais improvável?
Foi então que, recuando mais um pouco, me lembrei da festa (ou encenação) semi-orgíaca que José Matias promove, perante uma Lisboa escandalizada:
São desse tempo algumas das suas extravagâncias lendárias… Conhece a da ceia? Uma ceia oferecida a trinta ou quarenta mulheres das mais torpes e das mais sujas, apanhadas pelas negras vielas do Bairro Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e gravemente, melancolicamente, posto na frente, sobre um grande cavalo branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça, para saudar a aparição do Sol!
Não mostrará esta festa de prostitutas, com cavalo branco a comandar, uma qualquer farsa mórbida e auto-flagelante, onde, ao mesmo tempo, se entrevê o mapa emocional com a cartografia completa dum comportamento físico incapaz, e, por isso, obrigatoriamente virginal, que a brancura da montada acentua de forma melancolicamente histriónica? – o mesmo físico traidor que o Filósofo parece invocar no contraditório balanço final que faz de José Matias quando o caracteriza como sendo «talvez ainda menos que um homem», ou, presumivelmente, um homem incompleto?…
A este propósito, lembrei em Eça de Queiroz e os seus clones o músico francês Erik Satie, que foi encontrado morto na sua paupérrima casa – onde, entre muitas tralhas, lhe descobriram um conjunto de intensas cartas de amor que na realidade nunca tinha chegado a enviar, mas que guardava ciosamente ordenadas por datas e atadas por fitas de cetim que apartavam os anos da sua não-expedição.
Claro que Satie era um melancólico.
Mas era também um ser estranhíssimo, com fixações místicas e experiências monásticas – e, acima de tudo, senhor duma partitura totalmente despojada de ornamentos modernos e harmonias de grande efeito. Um lunático genial para muitos, entre os quais me revejo totalmente quando oiço algumas das suas gymnopédies ou a Sonnerie de la Rose & CroixAir du grand Prieur… 
Convenhamos que José Matias não era nada disto.
Convenhamos ainda que ele não é real como pessoa, mas apenas como personagem de um escritor, que a ergueu e lhe deu ânimo vital no átrio da realidade.
E o que seria da realidade em Eça sem o manto diáfano da sua magnífica fantasia? …
Os filósofos gregos, Espinosa (quase um moderno evolucionista), Malebranche (um crente de Descartes) e o instável Fichte (um hegeliano proto-nihilista) fazem ali o quê, afinal?
Na minha sempre imodesta opinião toda esta gente está ali a ajudar Eça na criação da espessa névoa onde o escritor, com elegância superior, escondeu uma crueza da realidade mais elementar. 



Nota final

Não deixa de ser também curioso que apenas possa acusar Espinosa de suposta cumplicidade filosófica na elaboração de José Matias, porque uma das suas passagens da Parte II da Ética, citada por António Damásio, parece-me particularmente esclarecedora:
«O objecto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, o corpo tal como actualmente existe […] E daí que o objecto da nossa mente seja o corpo tal como existe e nada mais».
Ou seja: até um presumível platonismo exacerbado, talvez viável na presença de uma Elisa irremediavelmente casta, fará apenas parte da névoa que Eça, a meu ver, espalhou por todo o seu conto, tal como os matizes e contrastes escolhidos pelo pintor acrescentam volume e dão profundidade ao seu quadro. 

[i] Esta adenda foi publicada na secção Queridos Mortos do blogue É Tudo Gente Morta, a 20 de Julho de 2010 com o título José Matias de Albuquerque


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