domingo, 13 de novembro de 2011

CAPÍTULO VI – Carlos escreveu a Maria Monforte

A presença permanente de coincidências – umas apenas curiosas, outras dotadas de força suficiente para terem efeitos práticos – é uma das divergências da realidade (tida por boa) que, apesar da sua frequência, consegue sempre surpreender-me.
Dá a impressão de que certos acontecimentos, por vezes bem vulgares na aparência, se conjugam de forma abstracta para me enviarem uma mensagem – que surge intermitente, por vezes absurda, mas outras vezes muito concreta.
Esta que agora vou descrever faz parte das concretas.
Tudo começou com um trabalho da disciplina de Língua Portuguesa que a minha sobrinha (então) mais nova estava a preparar. O processo começava pela escolha de um dos autores constantes do programa do ano em curso, e a Isabel, não renegando o antepassado já distante, escolheu sem hesitações o Eça.
Ora o Eça do programa – e o mesmo se passará com muitos outros autores – encontra-se desde tempos quase imemoriais preso a Os Maias, como um velho brigue atascado no lodo duma qualquer baía de mares desconhecidos.
Aparentemente, parece nunca ter havido imaginação para mais da parte dos responsáveis por tais programas – e quase parece que as grandes alterações na escolha dos autores e respectivas obras apenas se manifestam em contínuos acrescentos e abates à lista criada, muito provavelmente, nos tempos de Salazar.
Como método é do mais simples – mas esse é tema para outras batalhas.
De volta ao trabalho da minha sobrinha sobre o seu trisavô, constava dele a elaboração de um texto em que se deveria inventar uma carta que Carlos da Maia teria hipoteticamente escrito a sua mãe. Seria a primeira vez que Carlos se dirigia a Maria Monforte e, naturalmente, o assunto remetia à complexa trama de adultério e abandono que o escritor forjou para que as suas personagens pudessem existir n’Os Maias.
Isabel escreveu um texto escorreito, com ideias que vincavam bem uma crítica quase cruel do filho a respeito da mãe. Mas, de acordo com a sua professora, faltavam ali uma certa sonoridade oitocentista e referências de natureza cultural, que Eça certamente integraria em tão mirífico texto. E também uma parábolazita ou outra poderiam acrescentar alguma credibilidade à ‘falsificação’...
Perante algumas dificuldades na recomposição da carta – bem naturais numa rapariga de 16 anos –, Isabel pediu-me ajuda. E eu, a partir do seu esboço, integrei aquilo que achei poder ser alguma da tensão que Eça, também ele, poderá ter sentido e recriado de alguma forma.
A partir daí a minha sobrinha concluiu o seu próprio texto – e eu fiquei com o meu.
Aqui está ele.

A carta impossível

Lisboa, 20 de Julho de 1888                                      


Senhora:

Sabendo eu de antemão que nunca esperaria receber tal missiva, tenho obrigatoriamente de lhe revelar, antes de mais, quem de facto sou.
Chamo-me Carlos e sou seu filho – aquele que abandonou era ele pouco mais do que uma criança de cueiros.
Na verdade eu era muito mais do que uma simples criança de cueiros. Sim! – porque o seu filho deveria ser mais importante do que tudo o que a possa ter feito fugir à sua responsabilidade de mãe.
Por meios que não vêm agora ao caso, tenho na minha posse a sua morada desde há algum tempo. Todavia, em boa verdade o digo, nunca logrei juntar a necessária coragem para lhe escrever – afinal, pare tentar de algum modo cerzir aqueles laços que jamais deviam ter sido rompidos.
Agora, após muitos anos de dúvidas e angústias – que entenderá bem, talvez não como Maria Monforte mas certamente como a mulher e a mãe que nela deverão existir –, sinto-me finalmente preparado para enfrentar a verdade: conhecer as poderosas razões que a levaram a abandonar-nos ao nosso para sempre sombrio destino. A mim e a meu Pai – que tanto a amava, a pontos de cometer esse acto tão drástico e tão carregado de dramática violência como é o suicídio.
Saberá a Senhora que, quando era mais novo, não conseguia perceber porque é que todos os meus amigos tinham mãe e pai, e eu era o único que não os tinha?
Era um terrível vazio ver a felicidade estampada nos seus rostos, enquanto se aninhavam nos carinhosos abraços, sabendo pela fonte segura do coração que eles estariam para sempre a seu lado, protegendo-os com o seu cuidado e infinito amor...
Infelizmente, eu nunca pude sentir tais afectos. E assim fui tentado a disfarçar tão absoluta e física ausência com as minhas peripécias amorosas e inúteis aventuras.
Foi o meu avô, Senhora – o homem mais forte e corajoso que eu conheço –, quem me criou. Não foi certamente uma mãe ou um pai – porque esses não têm substitutos. Ainda assim, conseguiu dar-me a atenção de que eu tanto necessitava. Graças a ele tive uma educação viva e avançada, pela qual lhe serei eternamente grato. Concluí o curso de Medicina – a minha grande paixão –, e abri o meu próprio consultório.
Tudo isto a ele o devo.
E foi também ele, num fim de tarde, na quinta de Santa Olávia, quem me explicou que os cucos – sim!, esses mesmos, que ecoam nas nossas matas e Lineaus tão bem descreve e classifica! – não tinham pais como deveria de ser.
Disse-me ele que a fêmea se limitava a colocar o ovo em ninho alheio, deixando que outros cuidassem da sua criação...
Onde poderia eu evocar – utilizando palavras do grande Nerval – «le spectre funeste qui traversait ma vie»?... Onde encontrar consolo e refúgio para tamanho sofrimento, que, como médico que sou, já quase considero enfermidade?    
Em lugar nenhum! Porque aconteceu um dia, Senhora, ter eu descoberto o que levou meu Pai ao suicídio. E então fui acarinhando a certeza de nunca mais querer falar consigo.O simples pensamento de que a sua fuga fora responsável pela morte dele transportava-me para um monstruoso universo de ódio quase convulsivo. A simples ideia enojava-me! E ainda o faz, por vezes.

No entanto, dá-se agora o facto de que decidi comportar-me como um adulto e dar-lhe assim uma oportunidade para se explicar. Em boa verdade, nem sei ao certo por que o faço, mas ser confrontado com a realidade nua e crua é, certamente, um acto de adulto. Há de concordar comigo!
Esta é, pois, a razão porque apareço agora nestas linhas necessariamente amargas, para saber se sempre valeu a pena o rumo que deu à sua vida, e se acha que eu ou o meu pai merecíamos a sua traição.
Não sei se foi por amor, paixão, ódio, desgosto ou neurastenia, mas qualquer que seja a razão – nem mesmo a mais exclusiva das paixões – nunca ela justificará um dia o abandono do seu próprio filho.
Veja bem, Senhora: nem mesmo os «Misérables», de mestre Victor Hugo, viveram o que eu vivi! Porque os seus ausentes pais e mães, as suas famílias destroçadas, eram, elas próprias, «des misérables»!
O que não é de todo o nosso caso...

Na realidade, eu não tenho a menor ideia sobre o que possa ter motivado essa sua impensável e enorme loucura, porque nem o meu avô ou quaisquer outras pessoas mo revelaram. E tudo assim foi permanecendo, até ao dia em que me cansei da minha reflectida comiseração – de sentir essa pena toda de mim próprio. Então, como um ‘coolie’ chegado de Macau que aporta no outro lado do mundo disposto a começar de novo toda uma vida, consegui avançar por entre alguns sucessos amenos e um longuíssimo e extenso esquecimento.
Como tal, por mais irrealista ou estranha que seja a sua resposta às minhas justas questões, acredite que nada me poderá chocar mais.
Nem mesmo a ausência total de resposta. Uma vez que abandonou o seu filho já não poderá voltar atrás – comigo não, certamente. O Destino quis dar-me uma vida suficientemente agradável sem a sua presença, e não será agora que a vou interromper – justamente por sua causa.
Compreenderá a Senhora que é impossível perdoar-lhe tamanha falta, mas também não é esse o propósito que me move a escrever-lhe estas duras e frias palavras.
Na verdade, eu só preciso mesmo de perceber o que aconteceu, o que a levou a cometer tão nefando acto.
Como é que foi capaz? Como conseguiu eliminar um filho da sua vida? Diga-me! Não foi por minha causa – porque nessas idades não existem culpas.
Foi alguma coisa que o meu pai fez? Ou o meu avô? Poderá ter sido um rebate social tardio, a vergonha do seu pai ter enriquecido como negreiro?...
Não acredito!
E a minha irmã?, de quem só há pouco sei da existência –, também quero saber dela!
Porque é que a escolheu a ela e não a mim?
Estas dúvidas produzem uma dor insuportável – uma dor de desengano e traição! Como eu gostaria de poder desprezar olimpicamente tudo isto! Mas não consigo...
Senhora: poderei neste momento parecer-lhe a pessoa mais desagradável deste Mundo, mas tal não é necessariamente verdade. Porque, dadas as circunstâncias, sinto-me credor da sua especial compreensão e cuidado. Depois de todo o labirinto de sentimentos que fui vencendo através da vida, não serão beijos ou flores que tenho para lhe oferecer numa qualquer hora de reencontro.
Porque aqui, no fundo do meu peito, resta apenas a verdade do que eu sinto por si e a urgente necessidade de compreender o porquê da minha estranha sina.
Espero ardentemente que leia esta carta e perceba bem o quanto me afectou com os seus actos. Já não pode voltar atrás – isso é certo.Mas ainda tem essa responsabilidade moral para comigo. 

                 O filho que nunca assumiu                  
                                                                Carlos da Maia


Da interacção

à extrapolação


O meu aproveitamento da mais do que académica hipótese de Eça pretender pôr um dia Carlos da Maia a falar com a sua mãe trânsfuga – que talvez até possa ser considerado um abuso, mesmo nas profundas desse imenso e inóspito matagal que é a teoria, ou simplesmente um exercício inócuo ou pretensioso (tanto me faz) – teve o condão de me levar de novo à sempre recorrente questão do nascimento e criação do escritor.
Porque, enquanto tentava encontrar algum grau de verosimilhança para incutir à falsa carta de Carlos a Maria Monforte, tive sempre presente que Eça, até ao fim da adolescência, não contactou de forma objectiva com a própria mãe.
A questão que aqui se pode colocar é se alguma vez o escritor abordou tal assunto com Carolina Augusta – porque certamente o fez com o pai. Ou se esse drama, tão real para ele, foi perdendo densidade com o tempo e a convivência, até se sublimar num respeito mútuo ou mesmo numa certa amizade.
Seja como for – e esta é certamente uma das razões porque muitos vêem nesta a mais significativa obra do escritor –, n’Os Maias existe uma real proximidade de situações entre certos protagonistas e algumas pessoas muito importantes na vida de Eça.
Os casos mais evidentes são o velho Afonso da Maia, que na sua juventude andara misturado com os liberais da maçonaria, e, por maioria de razões, Maria Monforte.
Mas enquanto a justaposição do avô de Carlos da Maia é benevolente em relação a Joaquim José de Queiroz – avô de Eça, liberal, também maçon e que, tal como Afonso da Maia, fugiu para Inglaterra depois de D. Miguel ter tomado o poder –, já os sinais utilizados para marcar Maria Monforte têm pontos de contacto meramente relativos face ao comportamento conhecido de Carolina Augusta. Porque, na realidade, esta não fugiu para sempre: apenas não quis ver o filho enquanto ele não cresceu.
No entanto, abandonou-o à nascença.
A utilização da proximidade relativa destas duas situações por parte de Eça – que dificilmente poderá ter sido inocente (na Tragédia da Rua das Flores a relação incestuosa é entre mãe e filho...) – parece revelar que, no fundo, ao recriar os acontecimentos daquela forma, o escritor quis dar a entender que, na realidade, não foi bem assim que tudo se passou... mas podia ter sido.
Este tipo de mimetismo nem sempre equidistante entre as suas personagens e a realidade pretendida, que o romancista utiliza em outras obras, é o filtro mágico que confere substância e vida própria a Basílio e Luísa, ao Conselheiro Acácio e a Juliana, a Amaro e à Cohen – e a toda a humana (talvez demasiado humana) horda de tipos que Eça criou e imortalizou.
Eles existiram de facto algures, e se o seu retrato não foi feito com absoluta definição fotográfica é porque não precisava de o ser – ou porque até era melhor que nem o fosse.
Assim, enquanto tal interacção entre a realidade e a ficção é benéfica, criativa e bem visível na fase mais realista de Eça, já as extrapolações que dela se fazem – pretendendo-se com isso dar outro papel às personagens que não o previamente atribuído pelo escritor – subscrevem quase sem excepção um certo tipo de raciocínio muito português, mesquinho e «pequinhento», que o próprio não se cansou de apontar e criticar em muitos dos seus escritos.
No realismo de Eça há sem qualquer dúvida um enorme contributo da própria realidade (como, a meu ver, em toda a sua obra).
Mas nem este contributo é absoluto, nem os vários aspectos e densidades que o traduzem podem ser manipulados a bel-prazer a partir do exterior – sob pena de tal não passar de mera subversão ou, na pior das hipóteses, da mais pura batota.
É disso que vou agora falar.

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