terça-feira, 8 de novembro de 2011

CAPÍTULO II – quatro andamentos para um crime sem móbil



[Nota pessoal: o conteúdo principal deste capítulo centra-se em quatro textos – dois meus e dois do Professor José Hermano Saraiva – publicados pelo semanário Expresso no Verão de 2004; no capítulo seguinte segue-se correspondência pessoal, onde abordamos o mesmo tema de forma, chamemos-lhe, mais agressiva  mas também mais divertida]

                                             &&&&&

O primeiro sinal de alarme chegou-me via telefone e avisava-me que, dentro de dias ou poucas semanas, iria passar na TV um trabalho de José Hermano Saraiva (JHS) onde era apresentada uma versão «muitíssimo estranha» sobre o nascimento de Eça.
A pessoa com quem falava assistira, abismada, à gravação do dito programa na sede da Fundação Eça de Queiroz (Casa de Tormes), e repetia-me agora alguns dos nacos mais estridentemente suculentos da história que o conhecido apresentador iria mostrar, em breve, no Canal 2.
No dia aprazado para a exibição do já polemizado programa, preparei o gravador vídeo para a hora prevista e saí em busca de compromisso há muito agendado. Cerca das duas da manhã, instalado em frente ao ecrã, comecei então a assistir a algo que, no momento, só me suscitou a maior perplexidade e até algum incómodo por ver alguém falar de um assunto que, obviamente, desconhecia por completo.
Mas aí eu estava enganado – pelo menos numa determinada medida. Porque, como compreendi depois, JHS limitara-se afinal a eliminar todo o (pouco) que se conhecia sobre o assunto para ali meter – com a ajuda dum vaguíssimo pressuposto legal – uma adúltera, um velho completamente moribundo e uma data de gente que se comportava de uma maneira pouco compreensível.
Lembrei-me então dum célebre dia, na passagem do milénio, em que lera n’ O Independente um texto igualmente abstruso – mas ainda mais rocambolesco – que me causara a mesma sensação que agora sentia: a de que algumas pessoas achavam impossível que Eça, apesar de todas as complexas vicissitudes mais ou menos conhecidas da sua vida, tivesse conseguido ser, no fim de contas, uma pessoa não só brilhante mas também bastante normal e equilibrada.
Nos dois casos acima citados, esta impossibilidade afundava-se na lonjura e imprecisão dos momentos que tinham antecedido o nascimento do escritor – o que exigia contar a história doutra maneira, para lhe dar mais dramatismo, mais sofrimento e também muito mais confusão do que aquela que realmente terá envolvido esses momentos de prova tão escassa.
Eça ser simplesmente filho de mãe solteira não chegava, definitivamente, para tão analíticos queirólogos: era preciso algo bem mais pesado, algo muito mais denso e tortuoso do que aquilo que se conhecia oficialmente.
No fundo, era preciso incutir um pouco mais de romantismo a toda esta já de si intrincada história.
Visto e revisto o vídeo de JHS, resolvi escrever sobre o assunto utilizando o que dele já sabia e mais uns quantos elementos arregimentados à pressa – mas tendo sempre presente o boato sobre uma muito falada mas fisicamente desconhecida carta, onde se supunha estar contada toda a verdade sobre o nascimento do romancista.
Ouvira falar disso, mas confesso que nunca dei crédito à sua existência. Sempre achei que se alguém possuísse tal documento, tê-lo-ia já mostrado e há muito tempo – com toda a certeza. Especialmente se contasse algo de muito diferente do que é dado por adquirido.
E como nós – a família – não temos essa carta...

Depois de acabado o texto em que rebatia as teorias de José Hermano Saraiva, existia ainda a necessidade de encontrar um jornal que o quisesse publicar.
Logo, e injustamente, pensei que o Expresso não o quereria, associando uma provável recusa à relação familiar entre JHS e o meu director de então – a quem, no entanto, enviei uma mensagem a dizer o que pretendia fazer.
A resposta de José António Saraiva não se fez esperar e dava-me a garantia de que, se o texto fosse válido, seria integralmente publicado.
Senti-me muito bem nesse dia – e mais ainda no dia em que, limpo e completo, saiu publicado no suplemento «Actual» do semanário onde trabalho há mais de quinze anos.


FÁBULAS CIRCULARES EM EÇA DE QUEIROZ *

«Ao longo de 51 anos fui-me adaptando ao facto de descender directamente de um dos nomes mais importantes da literatura portuguesa de sempre: Eça de Queiroz!, o Avô Eça, como sempre foi tratado na família – não de forma apenas carinhosa ou de familiaridade reclamada, mas sim pela nossa efectiva proximidade sanguínea e geracional.
O meu pai era o neto mais velho do escritor e eu ainda conheci, bem vivos e inteligentes, dois dos seus filhos – os meus tios-avós Maria e António.
Esta minha acomodação – por assim dizer intermitente – teve, para o bem e para o mal, momentos diferentes. É obviamente um nome que abre portas. Mas também produz invejas e engulhos. E usá-lo é, acima de tudo, uma responsabilidade muito pouco transmissível.
Glosado quase diariamente, não só pela Comunicação Social mas também pelo comum dos portugueses de cultura mediana, o escritor produziu sempre curvas exógenas de interesse ciclicamente renovadas. Entre elas produziu a esquisita «saga» de o quererem transformar a ele, Eça de Queiroz, numa personagem virtual de si próprio.
Tal «saga» teve como preâmbulo a dúvida quanto à sua natalidade: seria realmente da Póvoa do Varzim, ou de Vila do Conde?, ou até mesmo de Verdemilho?... Sempre achei o assunto espúrio, mas fui-me informando das várias versões e (poucos) testemunhos.
Por alturas do centenário da sua morte, a escritora Agustina Bessa-Luís deixou no semanário Independente um alinhavo mais ou menos grotesco onde dava a entender que Eça seria – afinal! – filho de um pescador poveiro (ou de qualquer outro homem) e de uma menina da conhecida família Carneiro Pizarro.
Denunciei então o ridículo da especulação na Revista Diplomática (1), argumentando com a manifesta falta de motivo perante o que realmente aconteceu depois: a assunção dos factos pelo pai, de imediato, e pela mãe, posteriormente.
Ou seja: porque diabo um magistrado de bom nome e uma jovem de família aristocrática aceitariam assumir tamanho embuste? Não houve dinheiro no «caso» porque nunca ninguém aqui foi rico.
E, de resto, a «doença dos pézinhos» (2) nunca atacou na família...
Agora – mais concretamente há cerca de duas semanas –, surge o professor José Hermano Saraiva na televisão (na «Dois») com uma versão da filiação de Eça no mínimo... bastante mexicana!
Sinteticamente, o interessante e grande comunicador desenvolveu uma teoria em que o pai de Eça, José Maria Teixeira de Queiroz, engravidava uma senhora casada com um homem já muito idoso, que o juiz esperava ver morto em breve, para depois casar com a jovem e alegre viúva recente. Tudo na paz do Senhor!...
Como tal não aconteceu, o vilão do Teixeira de Queiroz seduziu depois a jovem e nobre Carolina Augusta Pereira d’Eça, a pontos de a convencer a aceitar como seu o filho de uma outra mulher, fornecendo mesmo o apelido materno – em falta desde o secreto e conturbado baptismo do futuro escritor.
A «construção» deste adultério parte de uma análise defeituosa: José Hermano Saraiva serve-se da recusa de Teixeira de Queiroz em julgar o affaire Camilo/Ana Plácido, considerando que o juiz o fizera porque também ele era adúltero.
Ora Teixeira de Queiroz nunca afirmou tal coisa.
O que se sabe é que o pai de Eça não achava o adultério criminalizável. Ao mesmo tempo que se encontrava na incómoda posição de ter engravidado uma rapariga solteira. À época ambos os casos eram considerados graves e a sua reprovação social era enorme.
Esta é, e sempre foi, a memória familiar do lado Queiroz sobre o assunto.

Memórias convergentes de pessoas distantes

A partir de agora sirvo-me de um testemunho de parentes ainda próximos mas que nunca conheci: os Pereira d’Eça. Ou seja: a versão do outro lado.
Maria d’Eça, parente do escritor pelo lado da sua mãe, escreve em 1975 à sua sobrinha Maria Augusta d’Eça Alpuim o seguinte:
–«Aqui vão as notas que me pediste: a tia Carolina era prima direita do meu avô, pai do meu pai (general Pereira d’Eça). O nascimento do José Maria foi de facto um caso que envergonhou a família, mas a culpa foi dela. O tio José Maria (pai de Eça) tinha uma boa situação e quis sempre casar. Mas ela tinha um génio violentíssimo e ficou furiosa de ter caído nessa falta e tomou uma raiva ao namorado que não quis casar e suportou todo esse transe. Ela já não tinha pai. A mãe, à hora da morte, fê-la prometer que casaria, porque tinha muita pena do caso e da criança, que vivia com os avós».
Este extracto, que consubstancia a ideia geral vista pelo lado Queiroz, está publicado num livro do jornalista e queirosiano convicto Severino Costa (Eça de Queiroz – Subsídios Biográficos), chancelado por uma carta introdutória de Maria Lúcia Lepecki (3).
Do alto dos seus 90 anos, recorda Maria d’Eça, em Julho de 1975, à sua sobrinha Maria Augusta (que vive em Viana do Castelo e com quem tive o prazer de falar há dias): «Nós ainda conhecemos o tio José Maria Teixeira de Queiroz e a tia Carolina» (que sobreviveram ao filho). Ela «(...) era interessante, muito irónica» (seria marca do ADN?) «e todos lhe achavam graça. (...) Falava sempre à minhota e dizia à nossa mãe: "Bamos" a uma festa, mas não tragas "belhas" nem crianças. Ela era muito mais velha que a nossa avó e que a tia Eça, mas achava-as "belhas"» – conclui.
Diz um bom amigo meu, um sensato arqueólogo de alma e coração: «Nós, os historiadores, sabemos muito bem ler o que dizem os documentos mas não fazemos nunca a menor ideia do que realmente se passou nos palheiros».
Pois os segredos deste palheiro são os seguintes: Carolina Augusta Pereira d’Eça escondeu a sua gravidez de solteira em casa da família Carneiro Pizarro, em Viana do Castelo, e foi ter a criança na Póvoa do Varzim (4) no final do tempo.
O seu feitio imperativo, de «generala», era conhecido da sua neta e minha tia-avó Maria Eça de Queiroz de Castro, que em contrapartida gostava muito do avô José Maria. Ele contava-lhe histórias e ensinava-lhe jogos e truques de cartas (in Eça de Queiroz Entre os Seus, de Maria e António Eça de Queiroz).
Carolina Augusta não apreciava crianças, provavelmente porque gerou uma que não quis. Permitiu que o escritor acrescentasse «Eça» ao seu nome, mas apenas a partir do seu ingresso na Universidade de Coimbra. E cedeu-lhe oficialmente esse mesmo nome quando isso se tornou obrigatório e Eça era já uma celebridade.
Tal era a generosidade da mãe do meu muito sofrido mas magnífico bisavô.» 
  1. Revista ‘Mundos’, de Maio de 2001
  2. Ou paramiloidose: doença degenerativa e endémica da comunidade piscatória poveira e seus descendentes
  3. E também no livro Os Eças, de Maria Augusta d’Eça Alpuim
  4. Em casa de Francisco Soromenho, parente de Carolina Augusta

* Texto publicado em 17 de Julho de 2004


Como seria de esperar, o professor José Hermano Saraiva armou rapidamente a sua resposta, que saiu a 24 de Julho na mesma revista. Falava ali de uma «piedosa lenda familiar» e entrava, já impiedosamente (ao menos para mim, que nada sei sobre questões jurídicas), pelo inóspito mundo da lei.
O título ribombava que nem uma trovoada de Verão.

A VERDADE É SÓ UMA

desenho de Pedro Pimentel
– «Publica o Expresso de 17 de Julho, no suplemento «Actual», um artigo do senhor António Eça de Queiroz no qual sou pessoalmente visado em termos que julgo deverem ser esclarecidos. Assim:

1 – É ofensivo da verdade o resumo, que ali se faz, do meu programa no canal 2 da RTP sobre Eça de Queiroz. O que eu afirmei foi que o grande escritor foi filho adulterino, porque isso resulta necessariamente do documento junto ao seu assento de baptismo.

2 – De facto, o pai do escritor, em 18 de Novembro de 1845, dirigiu à mulher que estava prestes a ser mãe uma carta na qual lhe dizia que o nome da mãe não devia constar do assento do baptismo. E isso por duas razões: porque era «essencial para o futuro do meu filho» e para que «não seja precisa em tempo algum justificação de filiação». O pároco da matriz de Vila do Conde juntou a carta ao assento do baptismo.
O autor da carta era jurista e magistrado, bom conhecedor do Direito do seu tempo; consta da mesma carta que ela foi escrita por recomendação do avô do futuro escritor, que também era jurista de mérito. Ambos conheciam, portanto, bem o sentido jurídico dos termos que utilizavam.

3 – Ora esse sentido só pode ser um: a mãe do grande escritor era mulher casada. Se o seu nome constasse do assento, verificava-se a presunção legal: o pai da criança era o marido dela. E isso impediria o avô de criar o nascituro, como desejava e como veio a acontecer. Para elidir tal presunção seria necessária uma acção de filiação, processo judicial difícil e sempre escandaloso.

4 – D. Carolina Pereira d’Eça era, nessa data, pessoa solteira; se o seu nome constasse do assento, não só não seria necessária qualquer acção de filiação como, pelo contrário, facilitaria a legitimação, no caso de casamento ulterior.
A minha versão nada tem, portanto, de «mexicana» (confesso não ter percebido essa qualificação); é a conclusão obrigatória, e a única possível, da leitura jurídica dos documentos existentes.

5 – O dr. António Eça de Queiroz escreve que a minha «construção» parte de um «pressuposto defeituoso»: a recusa do juiz Queiroz em julgar o caso Camilo-Ana Plácido. Esse pormenor não tem qualquer importância; aludi a ele como facto consequente, explicável em face da situação que revelei. Se eu tivesse partido desse facto (que pode ser explicado de muitas formas) para concluir que o autor d’Os Maias era filho adulterino, teria procedido com indesculpável leviandade. Mas não foi assim. Li os documentos, estudei a lei vigente em 1845, consultei ilustres magistrados (até do Supremo) e professores de Direito, e a solução foi sempre a mesma: a omissão do nome da mãe, para não ser precisa uma acção de filiação, significa, necessária e exclusivamente, que a mãe era mulher casada.

6 – Julgo, em consciência, que o senhor António Eça de Queiroz não tem qualquer razão séria para ver na minha afirmação um insulto à glória da família. Penso até que a conclusão é a oposta. O pudor familiar tinha inventado a lenda de que a jovem Carolina, seduzida pelo magistrado, não tinha querido figurar no assento de baptismo. E também não tinha querido ver o filho, que uma velha ama criou, longe dela, até aos cinco anos. E recusara-se a aceitar o menino quando já estava casada com o pai dele. E só aceitara perfilhá-lo em 1885, quando ele já era um nome famoso nas letras portuguesas e precisava de documentos para casar com D. Emília de Castro (Resende), descendente de uma das mais nobres famílias portuguesas. Era, portanto, uma mulher monstruosa, que sacrificara o amor maternal em homenagem a preconceitos burgueses. A honra da família fica enriquecida: descubro-lhe uma trisavó adúltera (vá-se lá saber porquê, numa época em que casavam crianças com velhos proprietários), mas restituo-lhe uma trisavó adoptiva generosa, nobre, que soube emprestar ao bastardo o nome do marido, quando isso foi absolutamente necessário.

7 – E o próprio grande escritor sai engrandecido.
Porque nunca escreveu ele uma carta à mãe? Porque tem uma noção tão amarga da mulher, do amor, do casamento?
E porquê aquela obsessão do adultério e do incesto?
Foi por me parecer que tudo isso se esclarece com a minha revelação que lhe dei publicidade.

8 – Tenho sincera consideração e respeito pelos ancestrais sentimentos que motivaram a reacção do meu distinto contraditor, mas penso que a sua resposta só atiça a fogueira que ele julga chamuscar o prestígio familiar. Em qualquer caso, «amicus Plato, sed magis amica veritas» é aforismo que vem desde os romanos. Porque seria que o profético Francis Bacon lhe deu uma versão nova, substituindo Plato por Sócrates? Qualquer que seja a resposta, com Platão ou com Sócrates, a verdade é só uma. Nem seu bisavô nunca disse o contrário.

J.H.S.»


O tom paternalista deste final pôs-me imediatamente a ouvir imensa música – com muitas gaitas de amolador pelo meio!...
Mas havia já três coisas que eu sabia instintivamente: uma era a de que todo aquele pesadelo legal não provava coisa alguma – bastava fugir-lhe, como se faz todos os dias e em toda a parte do mundo; outra era a de que nada havia que pudesse sustentar – em termos físicos e práticos – a versão de JHS; finalmente, na terceira, estava a divertir-me!
E pretendia continuar.
Novo texto meu, em formato de carta aberta, é publicado no «Actual» a 7 de Agosto.

Dizia o seguinte:

TRÉPLICA PONTO A PONTO

Porto, aos 25 de Julho de 2004

Exmº Senhor Professor José Hermano Saraiva

«Permita-me desde já sossegá-lo referindo que nunca, nesta nossa troca de pontos de vista, fui tomado de qualquer sensação de ataque ao bom nome da minha família.
Tal nunca poderá acontecer por via de novas descobertas, hipóteses ou teorias sobre a paternidade do meu bisavô.
E, de qualquer forma, se um dia se alterassem os dados da realidade que eu tenho por certa – por via de qualquer documento de comprovada veracidade –, só me restaria aceitar os factos. Mas sempre benevolamente acompanhado pelo consolo inultrapassável de saber que a categoria de Eça nunca poderá ser beliscada.
Ele, no mínimo, alcançou a eternidade artística – e essa ninguém lha poderá tirar.
O que já não aceito facilmente é que teorias mal alinhavadas (que não é o caso da sua, convenhamos) ou hipóteses meramente académicas (esse sim, é o caso...) alterem o mapa genealógico que eu conheço do escritor, e que coincide com o que se encontra já integrado nesse fabuloso mundo que é a História.
Mapa esse que, por mero acaso bioquímico, é também o meu.
Quanto ao assunto que nos tem unido em tão bons momentos de interessante confronto, vou seguir o seu método económico e responder ponto por ponto ao seu texto «A verdade é só uma», publicado no Expresso do último sábado.

1 – Eu não fiz um resumo do seu programa: limitei-me a comentar a sua teoria sobre a paternidade de Eça.
Resumi, isso sim, a forma utilizada pelo Sr. Professor na exposição dessa mesma teoria.

2/3/4/5 – O senhor assenta toda a sua argumentação no pressuposto da infalibilidade dos preceitos jurídicos, tanto a montante como a jusante do momento em que são utilizados, parecendo com isso esquecer-se que a Justiça – com o seu rol de leis e de empirismos transformados pelo tempo e pela estatística em alíneas académicas – foi criada pelo Homem, que vive antes e também depois dela.
Ou mesmo à margem dela.
Na proposta que defende como irrefutável, o preceito jurídico em que se inscreve o polémico documento elaborado pelo juiz José Maria Teixeira de Queiroz só poderá supor que este foi utilizado para esconder a identidade de uma mulher que tivera um filho fora do seu casamento.
Todos os juízes consultados pelo senhor foram unânimes no seu parecer, e, como tal, devem ter razão.
Isso representará jurisprudência de muitos anos, e não me repugna nada a ideia de a Justiça de 1845 não se querer meter nos «sarilhos de fraldas» de uma sociedade civil supostamente integrada e estabilizada.
Então o estranho estatuto de «mãe incógnita» serviria de forma ideal para esconder a identidade de uma mulher que fora adúltera, mas que a sociedade civil – representada no Estado pela Justiça – consideraria ainda recuperável para essa mesma sociedade.
Para que tal resultasse minimamente bastaria a omissão do acontecido, não deixando que o seu conhecimento caísse na sarjeta. E, claro, convinha também a necessária cara alegre por parte dos protagonistas legais.
A criança ficara com o pai biológico e foi esquecida. E a vida continua depois, como se nada fosse.
Faz todo o sentido!
Mas então o que faziam as raparigas solteiras que engravidavam?
Aparentemente, não tinham saída! Pariam a criança em segredo e depois iam para freiras. Algumas casariam, também, mas em situações genericamente vexantes.
A não ser que o preceito jurídico fosse simplesmente ignorado – o que eu imagino ter acontecido bastas vezes.
E em sendo ignorado, que melhor esconderijo uma mãe solteira poderia encontrar do que o panteão das mulheres adúlteras, das que se escondiam atrás do biombo legal das «mães incógnitas»?
Porque não é credível que a fiscalização a preceitos legais dessa natureza (ou mesmo doutra qualquer) fosse particularmente eficaz no Portugal de 1845! E porque investigar sobre a veracidade do estado civil de uma «mãe incógnita» me parece uma hipótese de resultado tão mirífico quanto o foi a proposta ministerial de Júlio Dantas (curiosamente, parente bastante próximo de Eça...) que visava proibir por decreto a existência das sociedades secretas!
Como se proíbe a existência de uma sociedade que é secreta de raiz? E como se investiga o estado civil de uma mulher cujo nome se desconhece?... Torturando o pai da criança? Armando um escândalo medonho e destruindo assim a natureza e o objectivo principal do preceito legal evocado nas acções de filiação onde o nome da mãe não é citado?
Teixeira de Queiroz sabia certamente da importância do que legalmente estava em jogo e das eventuais consequências.
Mas, muito mais importante que tudo isso era a sua vida e o futuro do seu filho, que o juiz desejava ardentemente – como qualquer pai verdadeiro – ver criado no seio de uma família minimamente estável.
Ora ele sabia muito bem que a única forma de não incendiar ainda mais a fúria da sua ex-namorada Carolina Augusta Pereira d’Eça era não envolvê-la em qualquer escândalo de efeito imediato.
O assunto já nada tinha a ver com meros preceitos jurídico-legais. De facto, era muitíssimo mais importante e complexo.
E, certamente, no momento em que este juiz em causa própria entregou o citado documento ao prior da igreja matriz de Vila do Conde, o arcipreste Domingos da Soledade Sillos, nunca lhe terá passado pela cabeça o menor temor de que o padre lhe fosse perguntar sobre o estado civil da «mãe incógnita» daquela criança que acabava de baptizar.

Assim, a dedução de V. Exª, professor José Hermano Saraiva – tão bem apoiada no conhecimento de indubitavelmente doutos homens de leis –, é muito interessante mas não chega para alterar o que a História já assimilou como verdadeiro.
Porque, quando é absolutamente necessário, os homens mentem e ultrapassam as leis. Juizes incluídos.

6/7 – «Pudor familiar», Sr. Professor? Por parte de quem? Da família Pereira d’Eça?!
Qual seria a vantagem de juntar ao historial de uma família, bem vista a vários níveis, o estigma de abrigar no seu seio uma mãe solteira? Nenhuma!, muito pelo contrário.
No entanto, os Pereira d’Eça assumiram os factos – classificados por si como «lenda» – que estiveram na origem do nome, posteriormente muito celebrizado, de Eça de Queiroz.
Desde sempre e sem reservas.
Quanto à questão da minha hipotética «trisavó adúltera», não há lugar para preocupações. Possuo experiência de vida e abertura de espírito suficientes para admitir que qualquer ser humano deverá possuir o aceitável número de uma a duas trisavós adúlteras – no universo habitual das oito que existem na genealogia de cada pessoa. No meu caso – que só tenho sete –, até acho que sei de uma delas (1).
Falemos agora não de adúlteras mas antes da minha (ainda) trisavó Carolina Augusta – que o senhor insiste em considerar uma mulher muito «generosa». Então uma mãe adoptiva pode ser considerada pessoa generosa quando recusa liminarmente o convívio com o seu adoptado – ou mesmo deste com os seus outros meios-irmãos? E disso há muitas provas, Sr. Professor.
A questão era bem outra: o seu jovem filho José Maria (...) Queiroz representava a memória viva de um dos piores momentos da vida de altiva menina-de-família que Carolina Augusta foi.
O seu propalado e feroz egoísmo fez o resto, chegando e sobrando no desempenho de sombria inspiração para alguns dos temas mais fortes da obra de Eça: o adultério, o incesto, as mães solteiras que recorriam a «tecedeiras de anjos» e outros tantos tabus da época, tão ao gosto do espírito audaz de artistas da categoria de um Stendhal, de um Balzac ou... de um Eça de Queiroz. 
E com isto o senhor não retirou nem me deu nada.

8 – Chegado aqui, sou obrigado a revelar o meu atavismo irredutível no que diz respeito aos clássicos. Considero-os (do pouco que li) intocáveis, e qualquer reinterpretação moderna surge-me sempre como uma adulteração da sua verdade una e orgânica.
Porque, para mim, um bom livro é também uma maravilhosa máquina do tempo.
Finalmente, tenho de lhe confidenciar e agradecer – garanto-lhe que sem a menor das hipocrisias – o prazer genuíno proporcionado por estes excitantes momentos de reflexão, que nunca teriam existido se esta bela discussão sobre tão interessante tema nunca tivesse tido lugar.

Cumprimento-o respeitosamente e com amizade»

A.E.Q.
  1.  A verdade exige que diga aqui que me enganei sobre a pessoa que julgava ser a minha hipotética trisavó adúltera. Na verdade, a minha trisavó espanhola Matilde de Montufar Infante (filha dos marqueses de Selva Alegre, da Andaluzia) teve apenas o percalço de casar com o meu muito estouvado, exibicionista e riquíssimo trisavô António Leandro da Câmara do Carvalhal Esmeraldo Atouguia Sá Machado – o 2º conde de Carvalhal. Já a irmã dela, Rosa de Montufar Infante, casada com o visconde de Nossa Senhora da Luz, deu brado na sociedade de então com as suas várias relações extra-conjugais, onde se destaca a que manteve com Almeida Garrett. Daí a minha confusão, que agora rectifico.


A 21 de Agosto de 2004, inexorável, surge a resposta à minha carta aberta. Era prosa taxativa, apresentada como se estivéssemos todos a assistir ao final da instrução dum qualquer processo.
Ao lê-la, fiquei com a impressão de que nunca precisarei dum advogado. A não ser para coisas muito – mas mesmo muito – chatas. E percebi também que o assunto, em termos de polémica jornalística, acabara por ali.
Para continuar um pouco mais além, noutro sítio...
O título tinha pompa jurídica e era seco como uma sentença. Mas o início amansava-me com palmadinhas cordiais.

AUTOS CONCLUSOS

– «O Expresso de 7 de Agosto publica, sob o título «Tréplica ponto a ponto», uma carta pessoal que o senhor António Eça de Queiroz me dirige, em resposta ao meu artigo «A verdade é só uma».
É uma carta de grande elevação e cortesia, e não posso deixar de agradecer a nobreza com que o meu prestigiado contraditor vem brandir as suas armas. Vê-se bem que é bisneto do autor da Correspondência de Fradique Mendes.
Com um ou outro retoque de oitocentismo, esta missiva não destoaria muito desse famoso epistolário.
Quanto ao fundo da questão, o senhor António Eça de Queiroz reconhece a solidez dos meus argumentos. A lei é como eu disse, quem escreveu a carta conhecia a lei e não ignorava o sentido jurídico do que escreveu: se o nome da mãe constasse do registo de baptismo seria preciso, mais tarde, recorrer a uma acção de filiação. Isso implica que a mãe era casada com outrem que não o pai do neófito, porque de outro modo o nome da mãe não só não exigiria justificação como até a dispensaria. Ainda hoje os registos de nascimento com mães incógnitas se referem todos a mulheres casadas.
O meu distinto contraditor aceita tudo isto, mas argumenta que não há regra sem excepção e entrincheira-se no seu «atavismo irredutível».
É uma posição clara e castiça. O fidalgo Gonçalo Mendes Ramires diria, precisamente, a mesma coisa. E Gonçalo Mendes, filho literário de Eça, é da linhagem ilustre do meu replicador. Mas é completamente irrelevante para a decisão da causa. Na verdade, esta tréplica representa a completa confissão.

Publica também o Expresso uma carta do sr. Francisco Marques que tem uma parte boa (a transcrição da carta em que o dr. Teixeira de Queiroz recomenda que se não enuncie o nome da mãe, «para que não seja preciso em tempo algum justificação de filiação») e uma parte má (que são os comentários que o documento lhe inspirou). A conclusão a que chega é perfeitamente gratuita e repelida pelo texto da carta. Escrever que a omissão do nome da mãe
se deve tão-só à recusa desta em assumir a maternidade é esquecer que, além de recusa, pode haver impossibilidade.
Também a disparatada ideia de que o nascituro podia ser ou não filho do dr. Queiroz e neto do dr. Joaquim José é de todo inaceitável. O pai jurídico podia não ser o progenitor, por variadíssimas razões: por estar ausente (era uma época de intensíssima emigração para o Brasil), por ser idoso, por ser doente, por ser estéril, por estar separado de facto, por estar a cumprir serviço militar, etc... O Sr. Francisco Marques alega, pois, aquilo que, em casos desta natureza, se chama uma exceptio plurium, situação injuriosa e que não tem qualquer indício de prova.

A tréplica foi até há poucos anos o último articulado do Processo Ordinário, mas admitia-se resposta a tréplica no caso de nela se levantarem novas excepções. É o caso.
Pelo meu lado, dou por encerrada a polémica, que, ao contrário do que o senhor António Eça de Queiroz escreve, trouxe algo de novo e extremamente importante à biografia queirosiana: o nascimento adulterino do escritor. Os futuros biógrafos não poderão ignorar este facto, que, como já escrevi, lança luz sobre toda a obra do genial prosador.

Pelo meu lado, considero, pois, os autos conclusos, e será o público quem terá de dar a sentença.

Vai demorar muito tempo, mas a verdade foi descoberta e, como o azeite, vem sempre ao de cima.

Com os melhores cumprimentos.

 José Hermano Saraiva
Palmela, 8 de Agosto de 2004»

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