terça-feira, 13 de setembro de 2011

intriga opaca



o vento que os hebreus dizem de Espérida
não é de lá

vem do alto do céu
desse céu primevo que se abre à claridade
e depois foge com ela numa espécie de ganância de si

é um vento que pára o ser
que o interrompe, determinado,
e ainda assim o espicaça e escorraça
da droga subtil e demorada
que é o esquecimento da vida


a memória é agora uma relha-velha
lembra-se bem do que antes parecia apenas
um desenho mal começado

a estrada segue no topo da colina
até à casa baixa não muito comprida
ao lado um outro caminho que talvez desça
divergente
cada vez mais difuso

seguem nele alguns errantes do século
e a jornada não antevê destinos

(ficámos depois a saber)

nome ou número
também eles se perderam na erosão nublada do tempo

todos conhecemos um som, julgamos que sim
e não o conseguimos cantar


não somos como chineses encantados de papel

não comunicamos com deleite por reflexos do passado
ou de amores idos e perdidos na curva do rio ancestral
que povos da tradição tão bem cartografaram
em elegantes iluminuras debruadas a ânimo
e cor
com brilhos que tudo explicavam

este vento, dito de Espérida
morno ou gélido como muito bem entende o seu tempo
tolhe e emudece e enerva até à raiz do tálamo
sempre indiferente às queixas para si vazias

sempre zeloso e altivo na sua acção exploratória
sempre pronto a zurzir o desperdício da alma
até esta quase jurar não querer mais ser


a madrugada estremeceu como um fino caule
ao tropel dos cavalos mais próximos

o rumor surdo que fora nada por horas ausentes
é agora uma ária completa de sinais incertos


do norte chegam os pássaros, de leste também
e as redes das armadilhas vão-se erguendo ritmadas
junto à bruma que tomamos por horizonte
como velas de uma esquadra
que se apresta à grande travessia das batalhas

as crianças dos campos exultam
ao som aflito das primeiras capturas

e os seus gritos de meninos-pássaro
fazem-se ouvir bem longe


lá, onde o vento se recolheu de novo
após portentosa intriga

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