domingo, 20 de novembro de 2011

EÇA DE QUEIROZ E OS SEUS CLONES – EPÍLOGO



Estranhamente – ou talvez não –, o volume que eu imaginava como provável para conter resumidamente o que conseguiria obter espiolhando a vida do escritor, relendo as suas obras e lendo mesmo pela primeira vez algumas que não conhecia de todo, viu rapidamente a sua dimensão ser substancialmente aumentada e a sequência reordenada.
À semelhança do que acontece com a sua obra, que teve o dom de aumentar de interesse à medida que eu próprio ia crescendo (sei-o hoje como nunca), Eça foi crescendo também como objecto da minha observação. 
Os seus escritos de imprensa, as suas cartas, os seus contos – muito do chamado ‘último Eça’ –, serviram não só a minha delícia e surpresa, mas ainda mais o meu espanto face à multiplicidade e vastidão do seu conhecimento sobre a Natureza Humana. 
Ele prevê e explica a I Grande Guerra ao primeiro sinal do imperador Guilherme de Hohenzollern. Sinal este que será efectivamente dado pelo Kaiser cerca de 20 anos depois de tal previsão, e com a presença de vários dos protagonistas antes elencados pelo escritor.
Bismarck é apenas um deles. 
A vivissecção da França pretensiosa e da sua república jacobina, moralista e prepotente, os formalismos doentios da sua mesquinha administração e a própria sociedade francesa – tudo é esmiuçado ao pormenor em textos especialmente arrasadores.
A Inglaterra ironicamente sarcástica, polida e elegante, a imprensa medíocre, os bombistas anarquistas (o socialismo mórbido, como os classifica Eça), a sanguínea e única Espanha (a morte de Canovas), a bem-mandada Alemanha e o dramático sonho brasileiro, o emplumado czar de todas as Rússias e a verborreia meridional de Humberto de Sabóia – tudo serve para que o escritor construa um mapa político-social bem vivo da época, difícil de igualar por qualquer historiador dedicado. 
Eça vê por dentro.
Lê tudo, conhece de perto muita informação classificada – aquela que a sua profissão lhe faculta em permanência. Daí ser possível ler hoje um texto dele sobre o Afeganistão e espantarmo-nos com as suas observações, em tudo semelhantes às do melhor jornalismo actual (ou até mais acutilantes) que, ao contrário de Eça, vai lá para ver e por ali permanece a espaços ou em contínuo.
Finalmente, o escritor já só refere a política como um mero negócio de poder, seja ele representado numa qualquer democracia parlamentar (republicana ou monárquica), seja no mais primitivo dos estágios sociopolíticos então vigentes. 
De Portugal já só quase fala com profunda ternura e visível saudade. 
A espiritualidade que agora demonstra nos seus escritos – que lhe valerão zurzidelas de muito republicano laico no activo e até de antigos companheiros – sobressai nas suas Lendas de Santos, sem ensombrar as autênticas anatomias do comportamento em que se mimetiza.
Finalmente, a correspondência familiar dá-nos a imagem de um homem dos seus, que serão sempre a família – especialmente venerada dado ser algo que nunca tivera de forma completa até então – e os muitos amigos que chegam sempre, de várias paragens. 
A sua morte prematura contribuiu em grande parte para o aparente mistério que envolve alguns momentos da sua existência: que Eça não gostava de falar da sua ascendência toda a gente o sabe – e facilmente se percebe porquê. 
Mas tal não significa que não falasse de todo. 
E se a sua filha Maria tivesse mais do que 14 anos quando o pai morreu, talvez o livro Eça de Queiroz Entre os Seus não tivesse sido considerado à época apenas uma réplica de desagravo com origem em duas pessoas que só se lembravam do escritor enquanto crianças – e, como tal, pouco dignas de crédito porque apenas transmissoras duma ‘versão oficial’ demasiado carregada de sentimentalismo amoroso. 
«A nudez crua da Verdade...»
O que é um erro abissal e a fórmula simplista muitas vezes usada por académicos e outros teóricos para transformar um verdadeiro testemunho familiar – necessário a qualquer biografia – num documento tecnicamente imprestável. Neste registo Gaspar Simões é apenas o representante máximo de um vasto leque onde se juntam galhardamente pessoas de real valor, meros curiosos, pedantes e idiotas profundos. 
Um outro facto que resultou da inesperada morte de Eça foi o desaparecimento de muito do seu espólio pessoal, pois o navio que o carregava a partir do Havre, após o seu enterro provisório em Paris, foi a pique à vista do porto de Lisboa. Nem tampouco se sabe ao certo o que lá haveria e então desapareceu. Grande parte da sua biblioteca pessoal seria, por si só, uma perda irreparável. Mas muito outro material informativo existiria certamente – e aí sim, o acidente adquire foros de grande desastre cultural. 
Tal como eu, muitos serão os leitores de Eça de Queiroz que pensarão por vezes no que teria acontecido se ele não tivesse morrido numa altura em que – desprendido de qualquer vulgaridade ou interesse localizado que não o trabalho e a família – escrevia algumas das suas melhores páginas, onde A Cidade e as Serras representam um exemplo maior. 
A decrepitude, que alguns já terão presumido face a tão académica hipótese, não seria certamente o caso. 
Eu coloco a dignidade humana como o objectivo que certamente continuaria a querer impulsionar e a defender com todas as suas forças e sabedoria. 

António Eça de Queiroz

1 comentário:

  1. Não me canso de me surpreender. Cada nova leitura vem falar-me de um visionário. Um homem que lia os tempos (seus e vindouros) através de pequenos sinais. Tivesse nascido uns séculos antes e chamar-lhe-iam O Messias, pela sua capacidade de adivinhar o futuro através de uma visão cosmopolita e uma perspicácia fora do comum, Muito para além do comum... dos mortais!

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