segunda-feira, 7 de novembro de 2011

EÇA DE QUEIROZ E OS SEUS CLONES (capítulo I)


CAPÍTULO I

[publiquei ontem aqui uma introdução a esta reedição virtual com o título REEDIÇÃO DE UM SONHO (feito livro)]




COORDENADAS PESSOAIS

O texto que abre este meu breve passeio pela galáxia queirosiana tem duas características que eu entendi serem suficientes para justificar a sua primazia: foi o meu primeiro escrito publicado onde abordei algo que dizia respeito ao escritor; e é simultaneamente revelador das várias coordenadas pessoais que fui acumulando ao longo dos anos na minha relação com ele.
Foi publicado na revista «Máxima» em Novembro de 1989, agregado a um vasto artigo de fundo sobre a Fundação Eça de Queiroz – que, um ano depois, adquiria finalmente personalidade jurídica.
No entanto, e apesar dos meus vários cuidados, o texto sofreu alguns acidentes de percurso que me irritaram na altura.
O título, que agora surge como então o imaginei, foi vítima do marketing editorial da época, e, devido a isso, acabou transformado num bem patego «Reviver o passado... em Tormes». A série britânica «Brideshead» passava mais uma vez no écran – em segunda ou terceira reposição – e este ditava assim as suas sempre equívocas leis.
Tal como hoje – afinal de contas.
Na altura reparei também, embora com menor desgosto, que alguns dos nomes ali citados tinham sido misteriosamente remexidos em pequenas coisas – o que é no mínimo estranho, já que tudo estava bem escrito e em letra de forma.
Assim, a minha prima-tia Maria da Graça Salema de Castro (presidente vitalícia da Fundação Eça de Queiroz) – que na família todos conhecem e tratam por Tia Gracinha – surgia ali transmutada numa totalmente desconhecida «Gracinda». Só faltou o precedente «Ti» para o descalabro ser total...
E até o meu petit-nom, que um dos caseiros de Tormes carinhosamente estendia para «Quiquinho», sofreu de pensada simplificação e acabou num quase mimético mas totalmente deslocado «Chiquinho»...
Ou seja: alguém achou que tais nomes não podiam ser como eu os tinha escrito e decidiu alterá-los. São coisas muito próprias da Comunicação Social, que raramente provocam na própria mais do que um vago encolher de ombros.
Com «Ontem, em Tormes» pretendi contar o que eu conhecia do lugar, da casa e das pessoas que a habitavam, tudo bem cerzido nas minhas experiências vividas nesse sítio que sempre considerei mágico – muito antes de sequer desconfiar que, no futuro, o seu criador iria apresentar-se-me, também ele, como um verdadeiro mago.
E, de certa forma, a notoriedade quase surrealista daquela casa – ela própria enxertada numa espécie perene de personagem/cenário que viaja no tempo – acaba por ser o resultado de um grande passe de magia.
Recuaremos, portanto, até memórias coligidas há cerca de duas décadas.
Ou seja – recuaremos mais de 40 anos.



ONTEM, EM TORMES

Uma das coisas mais parvas que ciclicamente me perguntam é se eu, como descendente directo do escritor e usando o seu nome, «escrevo tão bem como ele». É uma pergunta sempre despropositada, feita (penso eu) com a piedosa intenção de criar espírito e promover a animação...
Mas quando se tem oito ou nove anos de idade – e quando tudo o que se sabe sobre o nome que se enverga é que ele vem de alguém célebre – isso não tem qualquer importância.
Dá-nos, talvez, alguma sensação de (indevida) superioridade face a todos os Silvas, Almeidas e Oliveiras que pululam as entranhas dos arquivos nacionais de identificação e as listas telefónicas.
Tormes, até onde a minha memória chega límpida, era uma casa quente e sólida, povoada de pessoas amigas, que girava na órbita duma personalidade/providência chamada Tia Maria.
Filha do escritor – mas sem que isso na época tivesse qualquer peso especial para nós, os miúdos –, a Tia Maria era aquela pessoa vivíssima que invariavelmente se encontrava sentada na sua cadeira do canto da sala principal, junto à lareira de briquetes e pó de carvão, ouvindo atentamente as últimas da BBC em onda curta. Ou escrevendo cartas aos seus muitos amigos e correspondentes.
Era uma velhinha curvada e admirável, miudinha, que falava com os «erres» e que ostentava no alto da cabeça uma poupa de cabelos brancos muito característica. Mais duas notas: todos os fins de tarde reunia no hall de pedra as pessoas da casa – muitos trabalhadores incluídos – para rezar o terço; e pelava-se por anedotas picantes – que o seu filho Manoel Pedro Benedito de Castro (o Tio Lão) prodigamente lhe fornecia sob o olhar ligeiramente crítico da sua mulher, Maria da Graça Salema de Castro (a Tia Gracinha).
Com 80 anos, a Tia Maria tinha a suprema pachorra de nos contar histórias ou ensinar truques de cartas, e era capaz de passar uma tarde inteira a jogar crapaud com um ser de seis ou sete anos. Além disso, tinha a maravilhosa consideração de escrever, a cada um dos seus sobrinhos-netos que fazia anos, uma carta perfeitamente personalizada – mostrando bem que sabia o que cada um fazia ou gostava.
Ela era, de facto, o astro brilhante da nossa Tormes.
A Tormes que eu pela primeira vez conheci – e que se chamava prosaicamente Quinta de Vila Nova, antes da ribalta provocada pelo efeito Eça de Queiroz – era pois um conjunto de três pessoas dentro duma casa. E era a casa aberta e vetusta, enquadrada no seu arco de entrada com escadas duplas e no seu pátio interior, bem guardada, ao lado da capela, por um grupinho de cedros que a anunciavam à distância. Do lado de trás, no jardim, a grande tília – que entretanto caiu vítima da velhice e duma forte tempestade – aconchegava esta imagem de conforto que se foi tornando querida e desejada por todos os que, como eu, a procuravam para uns dias de férias.
Depois, Tormes era a quinta, os caseiros, o feitor António Pinto e a mulher, as adegas e o lagar de azeite com os seus cheiros bons e penetrantes, os pequenos-almoços de broa, azeitonas e um copito de vinho – tudo bem à revelia da Tia Gracinha que, suponho, me queria com um apetite mais convencional.
Agora, com o seu estradão de acesso bem tratado e a indicação de que esta é a «Tormes de Jacinto», a casa de Santa Cruz do Douro (como também é conhecida) aparece-me mais distante no tempo e no espaço que dedico às memórias sentimentais.
As caçadas na mata e nas vinhas, o encontro efusivo com os velhos caseiros, a primeira ida à enorme cozinha ao fim duma separação de seis ou mais meses, com o António Teles a largar o balde de lavagem para os porcos – que vinha encher de restos – para me cumprimentar com um «olha o menino Quiquinho!»..., também são marcas vivas de um outro tempo de Tormes.
Do Eça?, ainda nada.
Passo a explicar.
O primeiro livro que li do meu bisavô foi A Relíquia, aos doze anos. Comecei às dez da noite e às sete da manhã ainda me espolinhava na cama, entre gargalhadas e a expectativa de mais uma cena erótica entre o despistado Raposão e a sua amásia do momento. Então fiz jus à fama que o escritor tinha e senti-me inchar perante a proximidade genética.
Mal eu sabia que, por si só, nada disso era realmente importante.
A casa, que agora contempla um excelente espólio do escritor, não estava ao tempo destas minhas memórias tão bem apresentada. Era, fundamentalmente, a habitação duma família sem filhos, que eram «substituídos» – como se tal fosse possível – por uma caterva de sobrinhos. Havia alturas em que era necessário marcar lugar para ir passar uns dias a Santa Cruz, de tal maneira isso agradava a todos.
A minha Mãe, que para lá ia muitas vezes comigo, esforçou-se pontualmente por me fazer crescer dentro dum conhecimento qualquer sobre a Tormes de Eça de Queiroz – que se dispersava na casa por fotografias, por móveis da casa de Neuilly, pela «Cabaia do Mandarim»*  e muitos outros objectos sem dúvida interessantes.
Mas eu gostava era da capela que então servia de armazém, do galinheiro enorme, da eira e das casas dos trabalhadores da quinta – a quem impressionava com cruéis sessões de tiro ao voo em morcegos, ao fim da tarde. Eu era bom com uma carabina de pressão de ar, sem dúvida, e eles exultavam com a gritaria dos bichos atingidos.
Há uma memória fixada pelo medo que a criou.
O meu quarto – ou o de quem quer que fosse miúdo naquela casa – situava-se no corpo mais moderno do edifício, junto às instalações das empregadas, e uma pequena rua passava-lhe por baixo, dando acesso aos carros de bois que por ali seguiam ao amanhecer com o seu choroso ranger de eixos. Havia vários cães da serra em Tormes, com as suas orelhas em ferida, sempre a abanar as cabeças para espantar as moscas que os assediavam. Estes grandes cães ladravam muito, como era da sua competência.
E por vezes uivavam também – o que fez o catraio que eu era então julgar, às três ou quatro da manhã, serem lobos os bichos que sonoramente se exprimiam dois metros abaixo da cama onde, paralisado, eu tentava passar despercebido.
Só a passagem dos carros de bois que iam para o monte, lá pelas seis da manhã, me acalmou os medos. E ainda houve tempo para me vestir a correr e apanhar uma boleia – o que depois se tornou num hábito muitas vezes seguido.
Bastante mais tarde, nesse dia, relacionei os uivos nocturnos com os cães da quinta. Mas, ainda assim, o medo voltava de vez em quando.
De Eça finalmente uns laivos: o cheiro dos laranjais, à hora do lanche (eram sempre óptimos, os lanches em Tormes), na bela varanda que dá para o vale do Douro, despertava na minha Mãe a descrição de passagens d’A Cidade e as Serras, da subida de Jacinto e Zé Fernandes da estação dos comboios até à casa, que ela relia sempre com o inevitável comentário intercalar de que «é tal e qual...».
Também as conversas com a Tia Maria, sobre a vida que ainda conseguira partilhar com o pai, me aproximavam de uma certa aura queirosiana, que se secularizou entretanto através desse ser prodigioso que era a minha tia-avó. Estou a vê-la a sintonizar melhor o seu fantástico rádio de válvulas, tentando evitar o fading das ondas curtas, ao mesmo tempo que evoluía numa qualquer discussão sobre política internacional com quem quer que estivesse presente.
Os livros do Avô Eça, um célebre baú de manuscritos e a grande foto do escritor com Carlos Meyer – que encima o fogão da sala de estar – foram coisas que a dada altura começaram a estar na minha atmosfera, até então exclusivamente preenchida pelos melros, gaios e pardais que era suposto caçar.
Fugazmente, era possível (mesmo a um catraio) aperceber-me da visita de pessoas importantes, que volta e meia chegavam para falar com a Tia Maria – talvez a respeito das muitas obras de que ela e o meu avô José Maria foram editores póstumos*.
Porém, isso era-me perfeitamente indiferente – como é fácil de imaginar.
Eu queria era borga: ir a Baião com o meu tio (que era lá presidente de Câmara), no seu Volvo «marreco», presidir à entrega de prémios em concursos de gado, ou almoçar no Marco com algum amigo dele – ou visitar alguma adega cooperativa –, tudo era um bom motivo de passeio.
Nas conversas que tinha com os lavradores da região – que o tratavam por «D. Manoel» –, era normal proceder-se a libações que vinham camufladas de provas de vinhos.
Tudo era alegre, havia boas anedotas, muito riso e amizade, e o mundo era perfeito – longe das aulas e doutros acontecimentos menos sorridentes.
O mundo era perfeito e pouco ou nada o podia perturbar – julgava eu. As poucas coisas que ali iam mudando tinham a ver com o hardware da casa: o fogão deixou de ser de lenha para passar a gás – mas a bela cozinha era a mesma, praticamente com as mesmas pessoas.
A desfolhada já tinha umas quantas máquinas a interferir, mas ainda era na eira e havia para lá umas quantas raparigas que suscitavam o meu interesse subitamente despertado.
O cabrito assado no forno do pão com arroz pingado, a sopa de carne muito fina e o encanto das pessoas eram os mesmos de sempre.
Um dia, como qualquer outro, soube que a Tia Maria tinha morrido. Mesmo que não quisesse – porque as outras pessoas da casa eram também importantes para mim –, tal facto tornou-se num marco dos meus sentimentos para com o lugar.
Lembro-me de que, no dia desse triste acontecimento, ao fim da manhã, o Tio Lão veio ter com a minha Mãe e disse-lhe: «É incrível! Ia agora mesmo ao quarto da mãe perguntar-lhe a morada duma pessoa a quem é suposto ir comunicar a sua morte».
É!, – a Tia Maria era o nosso Eça de Queiroz de Tormes.
O cenário posteriormente montado com o plausível propósito de ser o museu do escritor – e constituído com o suporte digno da vontade expressa da filha – foi sendo acrescentado ao segundo grande parque da minha adolescência, depois da Granja.
A maior parte da quinta é hoje vinha, e o estradão de acesso à casa perdeu o seu anonimato, apresentando mesmo alguma pompa discreta. Agora, os turistas e interessados já não se perdem – como por vezes me aconteceu, quando já lá não ia depois de algum tempo.
O grande segredo daquela casa – haver uma coisa tão boa e tão bem escondida – perdeu-se para sempre a bem da abençoada cultura e da manutenção da ligação da quinta ao escritor.
O que, tecnicamente, está correcto.
Segundo penso saber, Eça de Queiroz terá estado meia dúzia de dias em Vila Nova, e obviamente (suponho) terá detestado as instalações. A quinta era da família de sua mulher, Emília de Castro, e o grosso do trabalho na sua habitabilidade e rentabilização foi feito pela filha do escritor e pelo filho e nora desta – Manoel e Maria da Graça de Castro.
Eles – e eu também, porque não? – são a Casa de Tormes que conheço. Sem Jacinto, mas certamente com Zés Fernandes q.b., com a água dos mil córregos, a erva e as flores a explodir fora dos muros, as noites estreladas e tudo o mais.
Depois, os números foram-se alinhando, estúpidos, e o mundo perdeu algum do seu brilho original para ganhar outro diferente.
Seja como for, eu sei mais de Tormes que o Eça.


* (Na realidade a minha Tia Maria apenas editou um livro sobre a correspondência familiar do seu pai, sob o título Eça de Queiroz entre os seus

8 comentários:

  1. Divinal, Benedito.Sua escrita vai nos colocando na cena aos poucos e quando nos damos conta estamos abrindo as janelas da Casa de Tormes.Aonde quer que estejam, penso que Eça e a Tia Maria gostaram muito de ler-te também.E esperamos mais, Quiquinho!

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  2. Claro que vem mais, Turmalina!
    Ainda bem que estás a gostar, e, garanto-te, ainda vais rir também... E talvez ficar espantada, quem sabe.
    Um beijo

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  3. Tudo o que seja Eça de Queiroz, gosto sempre de ler e saber. Gratos

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  4. Be my guest, old friend!
    Grande abraço! (ao lado tens os outros capítulos do meu livro, se te apetecer...

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  5. Olá António! estes caminhos da net são fantásticos! a propósito de "As sete chaves" da Agustina, vim ter a este seu blog. que desconhecia e que me está a dar um imenso prazer ler. A minha admiração por Eça é enorme!... mas a sua prosa Kiki, simples e clara, é completamente arrebatadora. Que bom!

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  6. São realmente fantásticos, Palavras - por muitas trapalhadas que aqui se encontrem há sempre uma quantidade razoável de coisas agradáveis e interessantes a compensar. Agradeço-lhe o generoso comentário, é claro! (fiquei com a impressão de que nos conhecemos, ou estou enganado?...)

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  7. Formidável e lindo , de uma sensibilidade impar.

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