quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Wreckage colonial (**)

Havia um engenheiro de máquinas, hoje gestor de importante grupo empresarial aqui do Norte, que um certo major quis um dia transformar em governador civil de uma cidade já quase fantasma. 
Recém-formado, engajado na nossa tropa de fim-de-guerra, deveria representar alguma forma de Poder administrativo, evitar um vazio formal.
O major pretendia continuar a ser o que já era na cidade desde há escassos quatro meses: governador militar e comandante do batalhão que tentava assegurar uma qualquer paz em Malange. 
Isto passou-se em Maio de 1975 – ou, como costumo dizer para me rir do Tempo, no último quartel do último século do milénio passado. Mais concretamente no início da guerra civil que opôs o MPLA de Agostinho Neto (desde então sempre no poder) à FNLA de Holden Roberto e à Unita de Jonas Malheiro Savimbi.
O caos é relativamente conhecido: de nada serve tentar reproduzir o estertor de uma cidade, o medo das bombas, o stress da incerteza total, a evidência do desastre. E a multidão com os seus olhos brilhantes, inquietos de impotência, quase gastos de procurar a ajuda da esperança no impossível.
O major sabia muito bem disso tudo. 
Mas também sabia – ou talvez apenas achasse dever ser assim, seguir o livro, simplesmente – que a autoridade civil tinha de existir formalmente para que ele pudesse exercer a sua função militar. Por certo que achava isso, talvez achasse que ainda era possível fazê-lo.
Os dois jovens oficiais milicianos indigitados para tão estranha tarefa – a de redimir um poder civil que fugira à frente do fogo da guerra, também ela civil, e das suas bem sopradas brasas – rapidamente tentaram demonstrar o equívoco do seu superior:
– O senhor estará louco?! Já não há nada para segurar! O comércio foi arrasado, as lojas e as casas estão a ser permanentemente saqueadas, há pessoas que são abatidas simplesmente por estarem nas ruas!... A única coisa que agora fazemos é cobrir os corpos de cal... Vamos governar o quê?!... Com o apoio de quem? De Luanda? O senhor acredita nisso?!..., defendia nervosamente o  proposto governador civil a contragosto.
Então o major fez que sim com a cabeça, disse que concordava, que realmente não acreditava em nada do que acabara de propor.
– Mas não tenho outra opção. O nosso alferes sabe muito bem da situação em que estamos porque manda na 'ferrugem'[*]: eu não tenho viaturas para levar toda a gente para Luanda, disse o militar de carreira, marcando de forma sincopada as orações desta sua última frase. Porque não eram apenas os 500 homens do batalhão, havia que contar com mais de mil civis nas mais variadas circunstâncias. – Já não conseguimos proteger coisa nenhuma e estamos encurralados: não podemos sair daqui. Você tem alguma ideia, alferes Botelho?...
– O meu major sabe que estive anteontem debaixo de fogo durante quatro horas... Nada do que possa acontecer agora me espantará muito, mas é claro que tenho medo!, contrapôs, defensivo, o alferes engenheiro. Depois de breve pausa, continuou: – Bem..., se me arranjar alguma protecção eu e os meus mecânicos tentaremos arranjar peças e os carros necessários.
E assim teve de ser.
O miliciano, alferes da 'ferrugem', sem grande porte atlético e com cara de quem andava ali um pouco ao engano – afinal, a mesma de todo o batalhão –, passou cinco dias em incursões nocturnas, acompanhado dos seus especialistas e de uma Berliet com um pelotão de atiradores para protecção de proximidade e pouco mais.

Durante cinco dias retiraram de camionetas e carros abandonados uma quantidade apreciável de peças sobressalentes. Ao fim de uma semana a frota estava completa. No dia seguinte o batalhão abandonaria Malange, rumo a Luanda, acompanhado pela desgraça de mais de um milhar de civis subitamente desterrados.
Nessa última tarde, três militares do batalhão português cederam a uma tentação: foram vistoriar os destroços. Três amigos, um deles armado de uma velha Walther P-38[†]– e mais nada.
Uma livraria escaqueirada deu-lhes livros de pintura – esquecidos pelos anteriores assaltos. A casa de um radioamador local forneceu uns óculos escuros muito bons (Ray-Ban), um excelente e completíssimo atlas da National Geographic, de 1972, e um receptor de ondas curtas que nunca foi possível voltar a pôr em funcionamento.
Na última casa – que era rica de aspecto mas despojada de conteúdo – a busca foi severa.
Os três amigos viraram tudo de patas para o ar, à procura sabe-se lá de quê.
Subitamente, uma porta fechada!... À chave!... A gula cresceu primária, de forma natural. Havia que arrombar a porta, nada de particularmente difícil.
Mal a porta se abriu de rompante a vontade dos 'salteadores' logo ali murchou como o canhão subitamente amolecido num filme de desenhos animados: dentro da sala tão bem resguardada por dentro do edifício, mas agora já esventrada na sua parede exterior (talvez por uma morteirada), estava um preto – muito, muito preto – com uma espingarda de caça nas mãos.
A velha Walther não permitia grande sabedoria, ou sequer diplomacia, sobre o que fazer perante o indivíduo – que por segundos morosos olhou o petrificado grupo com o branco dos olhos todo saltitado de pânico.
Depois aconteceu o que no fundo toda a gente queria que acontecesse: num gesto rapidíssimo o tipo abriu a caçadeira, virou-a ao contrário – deixando cair os cartuchos –, e fugiu com velocidade digna de registo e uma salva de palmas de benefício.
Nessa última noite houve uma improvisada banda de música a chinfrinar, que festejava, inconsciente de álcool, de cannabis e de alguma esperança, o regresso à Metrópole[‡].
Isto tudo nas ventas dos que largavam o sítio que em muitos casos os vira nascer e singrar na vida. Agora, fugiam por razões que na verdade compreendiam muito mal.
Na manhã seguinte, às sete da manhã, a incrível romaria de desterrados (de um e do outro lado) iniciava os seus últimos dias em África.
Alguns, porém, ficaram, e outros até voltaram.
Outros não.

[*]
 Secção de mecânica-auto dum quartel ou destacamento operacional
[†] Pistola alemã vulgarizada na Segunda Guerra Mundial
[‡] Designação então corrente para Portugal

(**) Este texto foi publicado no blogue brasileiro 'Borboletas nos Olhos', da minha amiga Luciana Nepomuceno

(as fotos são da autoria do meu camarada d'armas Rui Romão)

5 comentários:

  1. Querido Benedito
    Nunca estive numa guerra e nem próximo dela.Mas há algo em mim que me revira as entranhas quando leio ou vejo imagens sobre ela.É uma mistura de medo e revolta que me provoca reações num campo que desconheço.Tenho curiosidade sobre como as pessoas agem e reagem estando num conflito desses, mas tenho certeza que sei a resposta.E não gosto dela. Talvez esteja no sangue, seja hereditário, uma vez que parte da família da minha mãe, os que sobraram, vieram para cá fugidos de uma.Obrigada por este texto que teoricamente tem final feliz :o)

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  2. Bem, Turmalina, isto aqui só dá uma breve e muito pequena ideia do que foi aquilo. E deixe-me que lhe diga: só gosta de guerra quem tem algo a ganhar com ela - mas 'esses' raramente lá se encontram...

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  3. Não gosto da guerra nem do que faz aos homens. Mas, às vezes, gosto do que os homens fazem dela. Como esse texto do Antônio, que tenho a alegria de ter em casa (e uns quadros bem pintados por aí e um ou outro romance, não é?).

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  4. Alô Luciana!
    Ainda bem que gostou de o ver aqui (mas foi escrito para si, não esqueça...)
    Agora reedito aqui um livro sobre o Eça...

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  5. Olá António!
    Hoje ao ver uma reportagem sobre a quinta de Tormes, e ouvir falar de Eça de Queiroz
    veio-me à memória um pedaço do meu passado...
    O meu nome é Margalho. Carmona no Uíge Angola, 1973, diz-te alguma coisa?
    Nesse período tive como amigo, um furriel miliciano com o nome Eça de Queiroz.
    Se não fores tu é um familiar teu.
    Era bom ter notícias!...

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